As tragédias e a escola de samba

Uma vez por ano, na Grécia Clássica, havia um festival de teatro para o qual concorriam os grandes autores. Eles eram obrigados a apresentar uma trilogia de tragédias - infelizmente a única sobrevivente é a Oresteia de Ésquilo - e uma comédia. As comédias escritas pelos grandes trágicos não sobreviveram, mas algumas de Aristófanes , do qual tampouco se conhece tragédia, chegaram a nós, entre as quais a fantástica As Nuvens ,onde ele goza Sócrates, Platão e companhia;

As peças de teatro, notadamente as tragédias, tinham um papel educativo. Eram ambientadas em geral num tempo razoavelmente remoto - cerca de 1200 AEC - em relação à época que eram representadas. Este deslocamento temporal permitia expor situações do passado em toda a sua crueza. Mas na realidade o que elas expunham eram situações do então presente, disfarçadamente, evitando a censura e especialmente as retaliações. Eram tão bem estruturadas na descrição psicológica dos personagens e suas motivações, que até hoje são tomadas como exemplos na galeria de personalidades bem conhecidas na psicanálise. Hoje o nosso festival anual chama-se desfile de escolas de samba . Os sambas enredo e os desfiles têm cada vez mais ''mandado recado " para a platéia e para o mundo, sobre alguns temas controversos da nossa vida ou da nossa história. E não se precisa mais o disfarce do passado para apontar a mazela do presente.

Veja essa conversa sobre música e cultura, com Roberto Menescal, Ana de Hollanda

e Glória Braga.

Infelizmente algumas escolas têm se deixado seduzir pelas promessas de dinheiro de patrocinadores e fazem desfiles bonitos, mas de temática pouco autêntica. Certamente este tipo de problema deveria existir também na Grécia. Por isso, de várias centenas de peças ,restaram as que mal dão para preencher um livro. Aqui as escolas têm trazido um aspecto de samba-denúncia, apontando problemas da nossa vida política, fazem narrações de episódios históricos e mesmo ficções bem estruturadas, que apontam temas pouco explorados do cotidiano do povão. Passado o carnaval, estas denúncias nao parecem ter um efeito comovedor ou influenciador da realidade. Ao pensarmos o porquê disso caímos na constatação que, hoje em dia, a nossa realidade supera qualquer ficção. É como o que se passa na vida real seja o enredo ficcional e o samba a versão rósea de uma realidade distante, que já pouco comunica. Abundam os exemplos mas para ficar num dos últimos há o caso deste deputado paulista, candidato ao Governo do Estado mais rico e importante da nossa Federação, sede do maior complexo produtivo e cultural do País. Pois bem este cidadão parte para uma missão oficial à Ucrânia, para levar solidariedade a um povo extremamente sofrido do leste europeu. Lá chegando, dedica-se a avaliar a eventual facilidade de tirar algum tipo de vantagem de moças bonitas, desesperadas pela situação. " Elas são fáceis porque são pobres", diz o nobre representante do povo. A fila de refugiadas é vista como uma fila de beldades ( "deusas! segundo ele) prestes a entrar numa discoteca paulista para uma balada. E promete fazer com elas cenas de escatológica repugnância. Em poucas palavras, um atentado ao Brasil, à Câmara de Deputados e a todas as mulheres do mundo. Fazendo o gênero homem de moral diz ainda que " não pegou ninguém" o que promete fazer nas próximas férias parlamentares, em viagem não oficial. Fico imaginando o enredo de um desfile. A ascensão e queda do Mamãe Falei , apelido pelo qual o deputado, influencer, se apresenta com sucesso nas redes . Se viesse a ser representado na passarela Sua Excelência, coberto de paetês, num carro alegórico, oferecendo taças de champanha entremeadas de reverências ao público. Um herói da pátria. Um promotor dos bons costumes. E para nós a ameaça de vê-lo receber nova e estrondosa votação.