Sobre Latas e Gente

O consumo de alimentos enlatados se popularizou com a primeira grande guerra. Antes disso, especialmente nos Estados Unidos, onde grande parte das inovações tecnológicas do século XX nasceu, as tentativas foram malsucedidas principalmente porque havia o costume de se elaborar as conservas em casa e guardá-las em potes de vidro. O advento da lata impedia que se visse o conteúdo do invólucro. Milhões de donas de casa não tinham coragem de oferecer a seus familiares um alimento cuja aparência só seria descoberta quando se abrisse o frasco. Mais ainda porque vinha de fora, não tinha sido feito em casa. Carne de porco ou de pato conservadas na gordura, além de manteiga e peixe seco, por exemplo, podiam ser guardados em recipientes opacos, mas tinham geralmente origem conhecida.
A associação entre indústria e alimentos era uma ideia nova. A “impessoalização” da comida não foi um processo fácil ou pacífico. Pra piorar, casos de botulismo oriundos tanto das latas ou potes domésticas quanto dos industriais, levavam famílias inteiras à morte, o que aumentava muito a desconfiança sobre alimentos em embalagens lacradas e opacas. A indústria, sob risco de ser mais mortal que a guerra para os soldados no front, precisou se modernizar e passar a aplicar processos de higienização muito mais elaborados, que acabaram sendo universalizados e chegamos ao que temos hoje.
Independentemente da desconfiança que ainda temos, em praticamente todas as casas do mundo ocidentalizado (incluindo aí o oriente todo!!!), há alguma comida em lata. Verdade que os processos de padronização industrial já nos poupam, em quase 100% dos casos, de alguma surpresa indesejável. A maioria das surpresas hoje em dia é invisível aos olhos e vem na forma de conservantes ou aditivos químicos que agem silenciosamente sobre nós. Mas enfim, vivemos mais hoje que no início do século XX, apesar dos enlatados.
E nem era sobre isso que eu me sentei pra escrever.
O que veio na cabeça inicialmente foi uma reflexão sobre a civilização e o quanto de “adaptações civilizatórias” somos capazes de absorver ao longo de uma vida neste nosso período aqui no planetinha azul.
O conceito básico de civilização como um “conjunto de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral e material de uma época, de uma região, de um país ou de uma sociedade” não parece mais suficiente para definir o que temos visto. Na sociedade do espetáculo (obrigado, Guy Debord) pós-moderna, pós-industrial e ultraconectada, não parece estar longe um conceito quase individualizado de civilização, agravado pela necessidade de exposição contínua e, de algum modo, “estimulante”, de maneira a não cair em nenhum tipo de monotonia e rotina. Ainda que isto possa ser enquadrado entre os tais “aspectos peculiares”, e talvez particularmente “de uma época”, a radicalização da individualidade, inclusive com prevalência sobre quaisquer perspectivas coletivas que não de admiração (a relação com os outros se dá no sentido do reconhecimento das virtudes do emissor, ou daquilo que ele, magnanimamente, divide de sua vida com seus seguidores...), soa pra mim, um inculto cidadão comum, como um tipo de “falha civilizatória”.
Nesse ponto, provavelmente por culpa do meu raciocínio pouco desenvolvido, eu vejo uma relação entre a evolução da indústria de alimentos e o processo civilizatório que nos trouxe ao atual estado de coisas.
A mesma humanidade que aprendeu a comer comida enlatada, padronizada e higienizada após milênios de caça, pesca, cultivo e preparo próprios, foi reeducada pelas mídias que massificaram ídolos normalmente também padronizados, higienizados e – convenhamos – enlatados, hoje parece se interessar, num estranhíssimo maniqueísmo, por ocupar um dos dois lados do espectro da ultraexposição, produzindo como nunca “conteúdos” cada vez mais transparentes (como os velhos vidros de conserva) ou alinhando-se passivamente àqueles que os seguem, numa espécie também estranha de “passividade ativa”, que não se limita, como no passado, à observação do ídolo quando a mídia decidia que ele apareceria, mas interagindo com ele nas redes sociais, inclusive opinando quanto ao que deve o ídolo fazer para agradar ainda mais.
Além da vida em bolhas de gente cujos princípios civilizatórios parecem semelhantes aos meus e não excluindo, obviamente, gente mais nova cuja adaptação às novas formas de sociabilidade é mais fluida que a minha, em muitos momentos me parece razoável, até interessante, a surpresa em abrir uma lata, talvez até sem rótulo, de modo a me surpreender com o que tem dentro. Isso com e sem metáfora.
A transparência, que é ótima como fundamento, em determinados momentos parece excessiva e desnecessária. Vivemos, no Brasil, um caso em que a transparência do governante, que sempre fez questão de expor seus piores defeitos, catapultada pelas redes e aparatos tecnológicos, o permitiu criar uma “hiperbolha”, capaz de converter defeitos em virtudes e mitificar o mal, no que seria, mantida a relação de exemplos, como uma mega coleta de fezes em um grande pote de vidro translúcido.
Mas nem tanto ao céu, nem tanto à terra. A velha transparência, ou o jeito antigo de conhecer pessoas, no modelo mais prosaico de conversa e sorrisos (ou não) não me parece que vá se tornar completamente superada pela forma virtual, ainda que seja menos “produtivista”, no sentido de que demoramos mais tempo pra fazer um determinado número de amigos, ou pessoas que passem a nos ser próximas.
Talvez isso seja a civilização, esse conjunto de espasmos sociais, de avanços e recuos, que nos permitem reconhecer semelhantes num universo geralmente hostil de personagens disponíveis. E nestes casos, vai importar pouco a embalagem. O fato de estar em um vidro ou numa lata de alumínio ou folha de flandres (ou em qualquer dos materiais atualmente disponíveis para embalar alimentos, não importando se transparentes ou opacos), não vai nos eximir de acertar ou errar na escolha de produtos ou pessoas para o convívio. A identificação vai ocorrer através de gostos ou princípios civilizatórios básicos.
Há quem goste de merda.
Fazer o quê?
Desde que não queira entrar na minha bolha de civilização...
Rio de Janeiro, junho de 2022.
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