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Sem Lenço e sem Documento



 

      Nunca pensaria que estava destinada a ser nômade. Não gostava de mudar de lugar, sair do paraíso que era o Rio. Quando eu via amigos indos orgulhosos conhecer a Europa, pensava que poderia nunca ir lá sem por isso me sentir roubada de alguma coisa. Estados Unidos, então, nem se fala.  Sempre dei mais valor `a tradição artística milenar da Europa do que às inovações tecnológicas da América. Mas quis o destino que eu me casasse com um americano e viesse para ca, iniciando uma vida de viagens e constantes mudanças. Depois de viver em diferentes estados, casas, e cidades nos Estados Unidos, fui parar no sul da Califórnia. Deixei de repartir o mesmo teto com meu marido, o qual, depois de 30 anos de casamento, só mostrava irritação e mau humor. Embora ele passe grande parte de seu tempo sob esse estado, saquei que a nossa convivência já estava mais do que desgastada. Discutíamos sobre as coisas mais triviais:


         “Cara você me odeia!” costumava dizer-lhe diante da sua expressão de raiva.

         “Não, eu te amo!” insistia.


         Um traço comum entre americanos é pensar que sentem o que “devem” sentir. A necessidade que têm de programar a vida é tão opressora que muitos não aguentam a imprevisibilidade do sentimento, e agem como se este pudesse estar submetido `as mesmas regras que regulamentam sua vida. Em comum acordo, nos separamos fisicamente e compramos a casa na Califórnia pra onde me mudei, enquanto ele continua a viver em Boulder. Nunca na vida imaginei parar na Califórnia, mas como meu filho já morava há muitos anos em Encinitas, encontrou uma casa adequada antes mesmo que fosse para o mercado. Foi feita em 1944, e por isso tem dimensões muito mais humanas e generosas do que as casas americanas de hoje. O salão foi logo destinado aos rituais de ayahuasca. Mas nunca suportei nem o piso e nem os armários da cozinha. Como estava mudando `as pressas, trocar tudo aquilo foi adiado indeterminadamente.


         “Você não queria um lugar pra escrever em paz?” Meu filho perguntava: “É só não olhar pro chão, ignora ele!”


         E o marido, sabendo das minhas restrições, reclamou que eu pensava ser Oscar Wilde, que não aguentava olhar para coisas que ferissem a sua sensibilidade estética. Quando teve de morar na França, depois de sentenciado `a cadeia e sido despojado de tudo que tinha só por ser homossexual, os amigos lhe pagaram moradia num hotel “qualquer coisa” em Paris. Wilde não suportava o papel de parede do seu quarto, e confinado ali nos seus últimos dias de vida, com seu constante humor, falou, antes de morrer: “Eu sabia que ou eu ou o papel de parede teria que dar o fora daqui!”


Meu caso foi melhor, pois entre o piso da casa e eu, é o piso que está finalmente dando o fora, junto com os armários da cozinha.  Há uns 3 dias, logo que acordei, encontrei minha filha Olivia apontando para um monte de água que vazou de um tubo atras da geladeira e se espalhou sobre o chão durante a noite. (Devo dizer que nunca vi eletrodomésticos se portarem tao absurdamente quanto na Califórnia. Dizem que é por causa da água, que é muito química).


Algumas tabuas já estavam descolando, e quando a gente pisava nas outras, saia água pra tudo quanto era lado. Chamamos uma firma que resolve emergências, e para que nada mofasse, eles instalaram mil máquinas de secar e tirar a humidade do local, informando-nos que depois de uma semana teriam que arrancar parte do piso, a “ilha” central da cozinha e todos os armários acima e abaixo do fogão. O barulho que aquelas máquinas faziam na casa me dava a impressão de que eu estava dentro de uma fábrica. Como eu e o marido conseguimos ficar amigos, decidi ir com Olivia passar os dias barulhentos em Boulder. Nem sei como conseguimos fazer as malas sob aquele ruido ensurdecedor. Os cachorros estavam apavorados e tivemos que vir de carro para trazê-los connosco. Nisso, recebi o aviso de que um velho amigo meu que mora em Boulder estava nas suas últimas semanas e queria me ver. Claro que eu iria. Ele foi meu namorado há seculos atras, antes de mudar-se para os Estados Unidos.


         O carro ficou superlotado, e desde que a viagem leva 3 dias, passaríamos duas noites em hotéis que permitissem cachorro, dormindo em Sedona e no dia seguinte em Santa Fé. Passamos por desertos que pareciam não ter fim., no limite com o México.


Viajar de carro faz a magica de nos tirar do que veio antes e do que virá depois, dando-nos uma grande sensação de liberdade ao estarmos sempre seguindo adiante através de paisagens novas e sempre deixando as que vimos pra trás. O mundo vai se renovando nas imagens do caminho e permitindo que a gente se esqueça de todas as cobranças da rotina e da repetição do dia a dia. As pistas mutantes e infinitas nos livram de nossa própria identidade, como num processo contínuo de renascimento.


Ouvíamos a gravação do Bhagavad Gita, nos capítulos em que Krishna orienta o guerreiro Arjuna. Ensina-lhe a ação certa, a que vale em si independentemente dos resultados, e que naquele caso era a de ir guerrear. Ensina-lhe também que deve sempre se lembrar do seu verdadeiro “eu”, este que esta alem da personalidade, dos desejos, e da impermanência. Enquanto isso, sem o chão habitual sob meus pés, indo acampar na casa de um marido e visitar um ex-namorado que traria de volta um passado ainda muito mais remoto, comecei a me perguntar quem eu havia sido, e quem eu era, afinal.


Sem lenço e sem documento, constante processo de redescobrir nossa identidade, é a essência do nômade. Há que se manter raízes na própria mudança, estabilidade na perpétua transição. E os cachorros, como ancoras, nos lembram o fundo de nosso coração. Nos lembram o “eu” de Krishna.

 

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