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O artista, a obra e a sociedade: QUEM INFLUENCIA QUEM?


Jorge Eduardo Collyer Simas

PRELÚDIO


Cada vez mais, a globalização - talvez de forma desigual-, a internet e os meios de comunicação fazem pontes, muitas vezes instantâneas, que fazem fluir a informação entre, praticamente, todas as regiões do nosso planeta. Além disso, imposições comerciais de grandes conglomerados, tornam a divulgação do “produto música” bastante eficiente.

Devemos considerar, também, que movimentos migratórios continuam a existir, somando-se o fato de que muitos povos são formados por uma diversidade de muitos outros que por vezes se sobrepõem culturalmente e causam uma predominância cultural.

A maioria das nações modernas consiste em culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. O “povo britânico” é constituído por uma série desse tipo de conquistas – céltica, romana, saxônica, viking e normanda. (HALL, 2019, p. 35)

O Brasil serve de exemplo, também, para isso, considerando que somos formados por diferentes culturas. E, se até algum tempo atrás, as pesquisas acerca dessas diversidades exigiam um trabalho demorado, geralmente no espaço acadêmico, hoje acontece por iniciativa própria de alguém que assim o deseje, ou através do que dita o mercado. É lógico supormos que as trocas e absorções de estilos diferentes e influências desejadas ou assimiladas de modo natural, ocorram com mais intensidade, com maior frequência e num tempo menor. Esse grande tráfego nas comunicações, traz como resultado mais amplo, alterações significativas que podem, com o tempo e com o nível de incorporação de tendências, influenciar padrões estéticos tidos com representativos de uma identidade nacional.

Por outro lado, há o argumento de que hoje existe uma tendência ao local, que Hall (cit.) chama de interesse pelo “local”:

Há juntamente com o impacto do “global”, um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia da criação de “nichos” de mercado), na verdade explora a diferenciação local (p.45)

Diante disso, é possível identificar que, sobre o fazer musical, existem influências de diferentes ordens, ora a pressão do mundo globalizado e conectado, ora a reação ao processo do amálgama de informações que transitam em todas as direções levando padrões culturais diferentes a, praticamente, todos os recantos do planeta.

Há quem culpe a globalização e a internet como causadoras dessa pressão. Entretanto, imposições sociais já havia em outras épocas, agindo sobre as manifestações artísticas em geral e particularmente na música. Wolfgang Amadeus Mozart, considerado um gênio, com obras eternizadas e com total reconhecimento nos dias de hoje, é exemplo disso. Seria de se esperar que um artista desse nível tivesse plena -ou quase - autonomia para compor e exercer sua arte. Entretanto, sabe-se que sua vida foi extremamente difícil, em grande parte pela frustração de não ter tido a liberdade criativa desejada.

A vida de Mozart ilustra um desses aspectos de maneira verdadeiramente pragmática – o destino de um burguês a serviço da corte no final do período, quando, em quase toda a Europa, o gosto da nobreza da corte estabelecia o padrão para os artistas de todas as origens sociais, acompanhando a distribuição geral de poder. Isto se aplicava especialmente à música e à arquitetura (ELIAS, 1995, p. 17)

Neste caso, que por extensão nos remete a muitos artistas, trata-se se de uma inferência muito próxima e direta, por parte daqueles que consumiam (e patrocinavam) a arte. Essa era uma realidade na época de Mozart, que se estendeu por alguns séculos, mais. Especificamente sobre os músicos, Elias (cit.) ressalta que

Tanto na Alemanha como na França as pessoas que trabalhavam neste campo ainda eram fortemente dependentes do favor, do patronato e, portanto, do gosto da corte e dos círculos aristocráticos (e do patriciado burguês urbano, que seguia seu exemplo) (p. 17)

Os músicos, muitas vezes na história, ficam imprensados em seus guetos, por uma não aceitação estética de suas obras ou por discriminação de várias causas; origem social, posição econômica, cor da pele, religião etc. E isso não acontece somente na área musical. No espaço das Artes Plásticas, são inúmeros os exemplos de artistas que tiveram, inicialmente, suas obras rejeitadas, como os Impressionistas franceses como Paul Cezanne, Claude Monet, Van Gogh e outros.

Essa barreira imposta ao processo criativo ou ao exercício de sua arte, pode trazer grandes dificuldades para quem enfrenta esta circunstância. Em conversas com Ernesto Santos, o Donga (1887- 1974) e João da Baiana (1887-1974), dois expoentes da música popular brasileira, protagonistas da história e do nascimento do samba, ambos me confidenciaram que recebiam ofensas e xingamentos por parte de setores da sociedade, que os colocavam como figuras associadas a entidades do mal e perseguiam aqueles que compunham ou tocavam samba. Isso ocorreu no século passado, mas ainda hoje existem ações orquestradas ou isoladas contra determinados segmentos musicais no Brasil e em muitos países. Daí, os músicos que se encontram nessa situação de preconceito, xenofobia ou perseguições outras, enfrentarem o dilema de cederem às pressões sofridas, enveredando por caminhos diferentes ou se manterem-se fiéis ao que suas veias artísticas determinam.

Diferente dessa ação coercitiva e constrangedora por parte de segmentos da sociedade sobre os músicos, mas exercendo um a pressão sobre estes, um ente deve ser considerado: o mercado vinculado à cultura de massa. Agindo sobre o fazer artístico de modo impositivo, ele chega a induzir tendências e até mesmo impô-las. Não é coisa de agora, como poderíamos supor. Wisnick (2003), em sua análise de um conto de Machado de Assis, identifica a existência dessa pressão através do dilema de um músico na virada do século IXX para o século XX pressionado pelo mercado: “um peão impotente entre a alienação de uma arte que não descreve o meio em que atua e de um mercado que instrumentaliza seus esforços vãos para os fins do lucro” (p. 16)

Assim, independente da época, é possível identificar outros compositores que enfrentaram esse tipo de encruzilhada que de alguma forma impactaria a criação. Muitos deles fugiram aos padrões populares em voga em suas épocas e só tiveram seu reconhecimento muito tempo depois, é o caso de Johann Sebastian Bach (1685-1750), que teve sua obra considerada de pouco entendimento para os padrões do seu tempo. Assim, a linha divisória que determina até onde o músico deve ou pode ceder, é difícil de ser determinada e muitos instrumentistas atuam ora sentindo-se aquém das exigências e pressões externas, ora indo além do que suas premissas estéticas permitem. Músicos que “atuam na noite”, tocando em casas noturnas, conhecem bem esses tipos de pressão: Precisam, segundo a pesquisa de Becker (2009), suportar a incessante interferência no que tocam por parte dos patrões e do público (p. 92).

Ainda é Becker (cit.) que levanta outra questão referente ao músico que ainda não conquistou definitivamente seu espaço. Um músico “médio”, como ele classifica, submetido a uma situação de conflito.

Para alcançar o sucesso, ele sente necessidade de se “tornar comercial”, isto é, tocar de acordo com o desejo dos não-músicos para quem trabalha; ao fazê-lo, sacrifica o respeito de outros músicos e, assim, na maioria dos casos, seu auto respeito (p. 92)

E assim, são inúmeras as circunstâncias em que, hoje e em outras épocas, o meio pode agir sobre o músico. Nos dias de hoje, por exemplo, é comum encontrar artistas que disputam entre si quem teve mais público em suas “lives” ou mais “curtidas” em seus perfis de redes sociais. Entretanto, cabe perguntar se o artista influencia o contexto sócio histórico cultural em que está inserido.

Há inúmeros casos em que a arte trouxe ingredientes fortes na mudança ou na adoção de comportamentos, passageiros ou não, para a sociedade. Nos dias atuais onde a mídia e a internet chegam a um imenso número de pessoas, temos visto o surgimento de artistas desconhecidos que alcançam uma popularidade considerável, emplacando tendências e até decolando, em suas carreiras, para o sucesso. Em muitos países, durante os anos 60 e 70, havia restrições ao rock devido a ideia de que esse gênero, por si só, levava as pessoas (jovens em especial), ao consumo de drogas. Mas devemos considerar que o comportamento dos músicos dentro da sociedade é reflexo de conexões e interesses comuns à sua classe, que muitas vezes não têm nada a ver com o desejo de ditar normas ou modismos, mas sim com a reação natural deles às situações que enfrentam no exercício de suas atividades. Estudando músicos americanos que atuam na noite, Howard Becker (cit.) afirma que:

Embora o comportamento desviante seja com frequência proscrito por lei – rotulado de criminoso se praticado por adultos, ou de delinquente, se praticado por jovens -, aqui este não é necessariamente o caso. Os músicos de casa noturna que investigamos neste e no próximo capítulo, são um exemplo pertinente. Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade (p. 89)

Existem letras de música, é claro, que tratam de determinados comportamentos e incitam os ouvintes a praticarem certas atitudes, independente do gênero a que pertençam. Recentemente, no cenário musical brasileiro, polêmicas envolvendo as letras das músicas de bandas como “Calcinha Preta” e “Aviões do Forró” servem de exemplo. Há quem afirme que o rap e o funk são estimuladores da violência, enquanto outros veem nesses gêneros uma válvula de escape para aqueles que os cultivam, dentro de comunidades mais simples. Existe, também, quem postule que essa música é uma ferramenta de conscientização política para seus admiradores.


FINALE

Que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve um oriki do meu velho orixá Ao porto de um disquete de um micro em Taipé

Pela internet (Gilberto Gil)


Recentemente uma famosa revista, Rolling Stones, dedicada ao rock, fez comentários pouco simpáticos sobre uma apresentação ao vivo do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso, pelo fato de, durante um evento, um de seus filhos ter usado um prato e uma faca, para acompanhar o pai em uma canção. O fato repercutiu e após um posicionamento público de Caetano, criticando a matéria, a Revista pediu desculpas e retificou sua posição. O episódio deixou claro o desconhecimento do articulista quanto às tradições musicais no Brasil e particularmente quanto ao uso de instrumentos na percussão na música deste país. Mesmo hoje, num mundo integrado por uma imensa malha de comunicação, certas particularidades ainda podem gerar espanto. Muitas práticas espontâneas do povo, podem trazer colaborações que se incorporam ao universo musical e muitas vezes se tornam peças importantes e quase indispensáveis. O triângulo no forró, a caixa de fósforo no samba, o berrante e a queixada em outros gêneros, mostram isto. Portanto o conhecimento das características do fazer musical, de um artista, de um povo, ou de pessoas de uma determinada região, exige pesquisa e aprofundamento, às vezes demorado.

A pesquisa de Seeger (2013), por exemplo, denuncia um equívoco de apreciação por parte de muitos pesquisadores que julgavam a música de alguns grupos indígenas brasileiros do Alto Xingu, como sendo formada por peças individuais, curtas, e desprovidas de um fio condutor entre elas, mas constituem sequência extensas de peças que se assemelham a suítes e óperas dermáticas, que duram horas, dias, quiçá semanas (p. 14).

Hoje, o tempo percorrido pela informação, diminui a ponto de ser praticamente instantâneo. O somatório de tudo que chega ao músico pode realmente influenciá-lo de modo desejado ou não, por ele. Da mesma forma, o entorno social e econômico no qual ele está inserido, pode inferir em seus padrões estéticos. Por outro lado, como vimos, o músico pode devolver, a seu modo, os estímulos que recebe, provocando reações, reflexões e até comportamentos com sua obra. A relação artista/obra/sociedade navega em rotas não-determinísticas, sem previsibilidade de sentido ou de intensidade, aproveitando o “infomar” e a “infomaré”:


Um barco que veleje nesse infomar Que aproveite a vazante da infomaré Que leve meu e-mail até Calcutá Depois de um hot-link Num site de Helsinque Para abastecer

Pela internet. Gilberto Gil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECKER, Howard. “A cultura de um grupo desviante: o músico de casa noturna”, capítulo 5 de Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.89-110.

ELIAS, Norbert. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

SEEGER, Anthony. “Fazendo parte: sequências musicais e bons sentimentos”, em Anthropológicas, vol. 24 (2), 2013, p.7-42.

WISNIK, José Miguel. “Machado maxixe”. Em Teresa – Revista de literatura brasileira, n. 4/5, 2003, p.13-79.

 

Jorge Simas é músico, compositor, arranjador e produtor.

Trabalhou em shows e discos ao lado dos maiores nomes da MPB, como João Nogueira, Beth Carvalho, Chico Buarque, Didu Nogueira e outros.


Recentemente lançou 3 discos pela Cedro Rosa: Carta ao Rei, em parceria com Paulo Cesar Feital, com participações especiais de Chico Buarque, Paulo Moura e Lenny Andrade, entre outros; Pela Palavra, Cd solo autoral e Jorge Simas Instrumental.



Carta ao Rei, de Jorge Simas e Paulo Cesar Feital nas lojas de streaming


Pela Palavra, de Jorge Simas


Jorge Simas Instrumental




 

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