NATAL
Quando eu era bem moleque, na meiúca dos anos 70, lá na Venda Velha, bairro escondido de São João de Meriti, aquela cidade cheia de gente ali no começo da Dutra, o Natal era uma festa engraçada e interessante.
Engraçada porque havia pouco dessas coisas que são ícones em toda parte. Não tinha Papai Noel, presente era pouco, bacalhau já era caro. Mas tinha rabanada, eventualmente alguma castanha portuguesa. De terceira, claro. A cada três, uma tava boa. Nozes e tal eram bem mais difíceis. Havia quem nunca tinha nem visto, conhecia de nome.
Interessante porque as portas se abriam. E nós, os moleques, íamos de casa em casa, numa espécie de Halloween (que a gente nem sabia que existia!), comendo um monte de coisas, bebendo refrigerantes e felicitando todo mundo pelo Natal. Adultos também faziam isso. Alguns até ficaram célebres no bairro pela voracidade com que atacavam mesas de desconhecidos...
Tínhamos todos, pela formação cristã predominante, uma leitura comum do Natal. Todos sempre entenderam a data máxima da cristandade, o nascimento de Cristo, etc. Isso nunca foi uma questão. Em muitas casas havia ao menos uma arvorezinha com pisca-pisca e um presépio. O término do ano letivo e o início do verão eram associados à festa também, com aquele calor de intimidar camelo e o tempo de pipas, que nos levava a todos para a rua com aquelas maravilhas de bambu, linha e papel, a linha dez enrolada na lata de óleo e - hoje a gente confessa com arrependimento – cerol. A ignorância provavelmente nos salvou de acidentes fatais.
Hoje, quando a época do Natal se aproxima, em que pesem os anos todos de formação cristã, o que efetivamente me faz falta são as casas abertas, o entra e sai de crianças e vizinhos com os quais a gente mal troca palavras durante o ano. Não sou um saudosista, bom que se deixe claro. A maioria das coisas era pior antigamente. A evolução tecnológica e o aprofundamento do conhecimento (eu mesmo usava cerol…) nos trazem vantagens óbvias, possibilidades que não tínhamos no passado. Nem preciso falar em ditadura e no escasso acesso à educação que caracterizaram o passado de gerações anteriores à minha.
A exclusão social, que é terrível hoje, era ainda pior antes. Houve uma clara elevação do sarrafo e mesmo quem vive em condições de certa precariedade hoje desfruta de importantes bens de consumo, o que inclusive as ajuda a complementar o orçamento. O telefone, por exemplo, raro no meu tempo de Meriti, é bem banal hoje e fundamental na vida de grande parte das pessoas. Viabiliza a prestação de serviços, facilita o contato com contratantes potenciais, agiliza o atendimento das emergências. A TV em cores, artigo também raro naquele tempo, hoje é a regra. Adolescentes de 15 anos provavelmente nunca nem viram uma TV P/B. Alguns nem as de tubo. E isso independe de onde eles morem.
O que parece ter mudado para pior, ao menos aqui do meu ponto de observação, foi a relação interpessoal, em muitos casos substituída, sem exagero retórico, pelo isolamento digital. Tempos modernos de solidão acompanhada. Para além dos males que seguem nos afligindo, nacional ou globalmente (voltamos a ouvir falar da fome em grande escala, sentimos nas ruas o aumento da população desesperançada, testemunhamos a adoção do termo “desalentado” pelos órgãos oficiais, assistimos a uma clara ascensão de distúrbios diversos de natureza psicológica ou psiquiátrica, doenças sociais, derivadas do modo como a sociedade “resolveu” funcionar, etc), estamos perdendo, aqui e ali, muito da sociabilidade e da cooperação que nos tornou a espécie mais bem sucedida do planeta.
Pode ser – provavelmente é - uma análise superficial e influenciada por uma certa forma de ver o mundo claramente em vias de substituição por um modelo de sociedade baseado cada vez mais na capacidade de consumo e menos em sentimentos ultrapassados tais como solidariedade, alteridade e empatia. Sem perder de vista as perspectivas e os enunciados tão bem sistematizados por Marx e Engels ainda no século XIX e tendo muito clara a permanente e cada vez mais acirrada disputa entre classes, com amplo domínio daquela que possui o capital - inclusive em sua capacidade de persuadir os menos favorecidos a se comportarem e raciocinarem como se não fossem meros proletários - não vivo, repito, a lamentar a falta de um passado de glórias. Isso, no meu modesto entender, pode se aplicar a clubes de futebol e escolas de samba, nunca à humanidade.
Mas vivo a lamentar, sim, repetidamente, que o tal “mercado” se ressinta do aumento de gastos sociais ou com saúde e educação, enquanto não dá um pio diante do genocídio de consumidores, por exemplo, como aconteceu com a pandemia recente e ainda vigente. Ou que a Faria Lima fique eufórica com o aumento nas ações da Taurus, resultado do aumento nas vendas de armas para civis. Parece distante e etéreo isso, não? Pois bem, trazendo pro chão, me ressinto da falta de humanidade que faz com que pessoas agridam o Padre Lancelotti e façam acampamentos pedindo golpe. Lamento profundamente que, em nome de uma suposta liberdade que esteve poucas vezes ameaçada, tenhamos, como país, mas também como sociedade humana em diversas partes do mundo, feito a opção radical à direita na gestão, defendendo a criação de muros mais do que de pontes, para usar o jargão que foi popularizado de uns tempos pra cá.
A comemorar, ainda timidamente, há pelo menos a retomada de rumo do Brasil, que certamente vai custar caro, mas nos permite pensar novamente em solidariedade e empatia, valores abandonados pelo discurso oficial nos últimos anos. Nos permite voltar a sonhar com um mercado inclusivo, com uma sociedade plural, que tenha acesso à comida e à cultura, saúde e educação diversa, ampla e comprometida com valores mais derivados do humanismo e menos das táticas militares.
Eu, particularmente, sonho com um mundo onde as portas estejam abertas na noite de Natal, sem medo da entrada de estranhos, como quando eu era criança.
Um beijo grande, otimista!
Que em 2023 estejamos por aí, rindo dos memes de 2022, que foram ótimos, mas rindo perto dos nossos, dos comentários ao vivo, curtindo as histórias reais de quem está ao lado.
Rio de Janeiro, dezembro de 2022.
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Adorei essa crônica do Léo Viana! Sensível, lúcida e humana! Obrigada!