DISTOPIA
Os dias passavam velozmente naquele março de 2052. Talvez fosse a sensação criada com a proximidade do carnaval, definitivamente fixado em abril desde os tempos da primeira pandemia de corona, a que se seguiram duas de sarampo, três de varíola, quatro de coqueluche e uma de caxumba, vindas, parece, não de países remotos da Ásia ou da África, mas de Miami, onde se refugiaram grande parte dos antivax do mundo, em grandes resorts milionários. Viviam ali tenistas, pastores, milicianos, fraudadores em geral, ex-ministros, empresários e até um pequeno grupo de artistas, porque sem vacina, tudo bem, mas sem entretenimento não dá!
Foi uma rápida digressão explicativa. Mas voltando, como eu ia dizendo, os dias passavam correndo naquele março, quase abril, de 2052. A diferença entre as estações deixara de ser gritante, desde que, em 2028 foi revogado o protocolo de Paris, por pressão do então presidente americano, um republicano liberal eleito pelo Wisconsin e cujo maior projeto era a liberação de tudo, desde armas nucleares em casa até todas as formas de aborto, incluindo o que poderia ser realizado na hora do parto, desde que ninguém fosse com a cara do bebê.
A população americana, apesar das benesses dos resorts de Miami e de toda a Flórida, havia sido reduzida em mais de 40%. Parcialmente pelas seguidas epidemias e parcialmente pela liberação total de todos os tipos de arma, incluindo armas químicas e biológicas. Praticamente todas as famílias tinham perdido alguém para o Antrax ou para o chumbo, ou ambos, geralmente por inapetência no manuseio. Os cânceres haviam se multiplicado como nunca, já que muita gente guardava suas próprias mini-ogivas em casa, entregues que eram pela Amazon. Diversas doenças degenerativas massacravam os americanos.
A mídia, onipresente desde sempre, imune ao tempo, seguia bombardeando os cidadãos de todo o mundo com informações as mais variadas, sem controle de fonte ou compromisso com a realidade. Superada a duradoura fase dos smartphones, todos recebiam um implante obrigatório no primeiro pré-molar inferior direito, que tinha as mesmas funções e era muito mais discreto. Por ali era possível ouvir música ou notícias, conversar com qualquer pessoa ou ditar mensagens, que seriam recebidas em óculos de realidade aumentada, que faziam o papel de televisão, mas com novas e múltiplas funções. Dada a conveniência, no entanto, a maioria das pessoas somente enviava áudios.
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Os velhos, cada vez em maior número, viviam relembrando histórias de tempos passados, que para a maioria da juventude da época soava como invenção. Falavam sobre um passado distante, em que havia a Amazônia, a mata atlântica, as florestas de Bornéu, peixes nos rios, animais enormes na África.
- Ih... lá vem o vovô de novo dizendo que viu um leão. Deve ser pesadelo que ele tem.
- Ele já te falou do Lobo guará? É uma fantasia recorrente dele. E girafa? Não faz nem sentido um bicho com um pescoção daqueles.
Os dias passavam rápido. A política se minimizara ao máximo. Os deputados e senadores do parlamento virtual, eleitos por seus seguidores, não se davam ao trabalho de fazer pronunciamentos em tribuna. Enviavam, quando muito, uma tag que sintetizava suas propostas. Ou sentimentos, posicionamentos, manifestações sobre assuntos diversos. Eventualmente acompanhada de um emoji. As tags substituíram as hashtags, com a retirada do #. Simbolizavam mais liberdade, ao # foi atribuído um caráter coercitivo, uma impressão de aprisionamento. Linhas duplas e cruzadas deveriam ser o símbolo, sim, do sistema prisional! Aliás, sistema prisional absolutamente obsoleto, uma vez que todos eram livres para tudo, não havia mais ação ou atitude que configurasse crime. O feminicídio voltou a ser prática corriqueira - e mesmo ritual - em alguns locais. Assim como o homicídio em todas as hipóteses, puxado pela defesa da honra. Você pode dizer o que quiser do teu vizinho, mas ele pode te matar. Ou vice versa.
As fábricas de armas se instalaram em grandes edifícios abandonados no centro das grandes metrópoles. As pandemias aceleraram uma forte migração para o interior e o consequente esvaziamento das cidades. Em resumo, o campo foi ocupado por uma multidão com dificuldades objetivas para a sua gestão e sem aptidão para a vida rural. Isso implicou uma redução de 40 % no total da produção agrícola brasileira, incluindo os commodities, mas não foi maior que a queda nos Estados Unidos, índia e países europeus que, ávidos por comprar, deixaram o Brasil sem comida para a sua própria população. Nosso país, a essa altura, tinha reduzido drasticamente o plantio de alimentos da cesta básica. O povo, sem dinheiro, já há muito também abolira o hábito de fazer 3 refeições diárias. Era inclusive difícil convencer as pessoas de que um dia havia sido assim. O gado pastava sobre o que restava do Pantanal e da Amazônia, mas nesta última, os altíssimos índices de contaminação por mercúrio tornavam o consumo impróprio. Havia mortandade de urubus toda vez que um boi sucumbia à letal toxicidade do pasto. A energia vinha toda da fusão nuclear e os rios deixaram de ser os geradores básicos na energia nacional. O preço do petróleo também estava em níveis muitos baixos, graças à tecnologia, que garantiu o desenvolvimento de novas fontes geradoras.
Veja as Mulheres arrasando nessa roda de samba, no Youtube.
Como não havia mais inverno nas regiões subtropicais, resultado das mudanças climáticas, o carvão começou a sobrar e também foi definitivamente banido por razões econômicas, claro. Nos mares esgotados, as últimas baleias tinham sido pescadas e consumidas ainda na praia, por famintos diversos que se concentraram no litoral do Japão, ligado ao mundo por um sistema de trens rápidos que cruzava o antigo Estreito de Bhering, agora conhecido como Google way. A Europa Ocidental também se conectava aos Estados Unidos e Canadá por trens, sob o Atlântico e sobre a Islândia, Groenlândia e ilhas do norte, no complexo iTrain. Um mundo de facilidades, mas sem comida suficiente.
Com a redução na população, imóveis aos montes foram deixados abandonados, inclusive os mais luxuosos, o que fez explodir a população de ratos nos EUA. Os venenos aplicados aos roedores agora também eram computados entre as principais causas mortis de americanos. Não era diferente na Europa, no restante das Américas, nas partes mais ricas da Ásia, especialmente da Índia pra cima e em Singapura e em toda a Oceania. As areias cobriram definitivamente o Oriente Médio. No Cairo era possível ver apenas poucos metros da grande pirâmide.
Restavam humanos vivendo como dantes, especialmente do jeito consagrado no final do século XX e início do XXI, apenas em pequenas aldeias no interior da África Subsaariana e na Amazônia brasileira. Mas a escassez também os ameaçava, assim como a contaminação por mercúrio, radioatividade e doenças trazidas das regiões ditas civilizadas.
Sem armas ou urnas, os que sobraram tinham em comum a localização próxima a nascentes de rios e uma lenda ancestral que previa para breve o fim do mundo, com a chegada de um indesejável visitante estrangeiro, trazendo miçangas, tecnologias, religiões, comidas e outras esquisitices.
A lenda ancestral, contada repetidamente pelos mais antigos das aldeias, fazia tremer aos pequenos, que tinham com ela sonhos horríveis.
Por vezes algum adolescente pensava em escapar daquele pequeno mundo pra ver o que havia adiante. Mas a lenda pesava. E permaneciam ali, protegidos. Até o dia em que o visitante chegasse. Ele chegaria. E seria o fim de tudo.
Querido presidente, esta é a minha proposta de enredo. Tenho alguns contatos com o pessoal da Globo e acho que consigo gente da atual novela das nove e do BBB pra sair de destaque. No início achei que ia ser difícil conseguir gente pra fazer os papéis antipáticos (antivax, coronavírus, epidemias, essas coisas), mas já soube que tem até gente se candidatando e até oferecendo patrocínio (parece que vazou, deixei o computador aberto, mas foi sem querer).
Um beijo com lantejoulas. E vamos pra avenida pra ganhar!
Ass.: Seu carnavalesco querido!
Rio de Janeiro, fevereiro de 2022.
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