Diogo
Diogo era só um garoto. Não amava os Beatles e os Rolling Stones porque vivia na Lisboa efervescente do início do século XVI. O movimento era muito especialmente frenético no entorno da praia de Belém, próximo à grande obra do Mosteiro dos Jerônimos , onde naus partiam e chegavam trazendo novidades. Fossem peixes do Mar do Norte, frutas e animais exóticos da África ou especiarias recentemente descobertas nas Índias por Vasco da Gama. Diogo acompanhava as novidades pelo pai, que chegara a tripular uma nau que foi à África em busca de madeira nobre, mas tomado por uma doença desconhecida, perdera a força física e parte da visão, tendo se tornado inválido para a atividade de marinheiro. Vivia agora de fornecer, com a família, bacalhau seco para as naus que partiam. Conseguira, logo que após o infortúnio da doença, e graças aos companheiros de maresia, um lugar entre os compradores do bacalhau que chegava do Douro, ao norte. Os portugueses tinham sido os responsáveis pela transmissão da técnica da salga para os pescadores do extremo norte da Europa. E tornaram-se grandes importadores do pescado, que entrava no país pelos portos localizados entre o Douro e o Minho.
Diogo não conhecia essa história toda. Num país que ainda tinha grande parte da população analfabeta, não seria ele, um moleque de dez anos, um grande conhecedor da história portuguesa. Mas a atualidade o interessava. O grande movimento de barcos e gente, com diferentes origens e destinos, produtos diversos e coloridos, tornavam o porto o lugar mais atraente da cidade.
Sabia que não muito longe dali ficavam os palácios, onde os nobres viviam e a quem a gente portuguesa devotava toda a vida. Também a catedral, aonde o povo só ia nos dias santos. E eram muitos os dias santos, de modo que o povo estava sempre por lá. Mas os miúdos não eram incluídos nessa peregrinação. Sua vida, na rua, se limitava às idas ao porto com o pai. Ora para receber e conferir cargas de bacalhau, descarregadas rapidamente por estivadores fortes, ora para embarcar as mesmas cargas em naus que partiam, garantindo a nutrição da expansão portuguesa pelos mares e terras do mundo.
A mãe, muito beata, pouco ou nada ia à rua, não fosse para ir à catedral. Viviam num pequeno conjunto de sobrados de dois pavimentos, bem atrás do lote do convento, doado há tempos por um grande armador a seus marinheiros. O patrão, amigo da família real manoelina, normalmente tomava de volta os sobrados quando demitia os marujos ou caso esses trocassem de patrão. Chegou mesmo a despejar viúvas e órfãos, mas poupou o marinheiro - agora bacalhoeiro - por alguma razão desconhecida. Havia muita coisa desconhecida naquele Portugal de 1500.
Diogo teve notícia, por volta de 1502, aos 12 anos de idade, da descoberta, por marinheiros amigos de seu pai, de uma nova terra habitada por gente nua e coberta de árvores enormes, com muitos pássaros coloridos e um calor quase permanente.
Em sua cabeça de menino, parecia um mundo mágico. O próprio rei, pelo que ouvira no zumzumzum do porto, recebera de lá uma carta, do escrivão da expedição, em que ele detalhava as qualidades da terra nova, além de pedir transporte para o genro, atingido pela crise econômica, que estava em São Tomé. Os detalhes vazados da carta falavam em gente nua, muitas árvores, terra boa, gente nua, muitas águas, missa de Frei Henrique, gente nua…
No Portugal radicalmente católico do início do século XVI, gente pelada e pecado eram sinônimos. No caso, pecado grave. A carta, no entanto, parecia também dizer, ao menos nos pequenos trechos vazados que chegaram ao conhecimento do menino Diogo, que a gente nua que habitava o tal paraíso recém-descoberto era completamente inocente, o que complicava muito a compreensão. O catolicismo medieval não admitia inocência.
Diogo cresceu e tornou-se adulto com a mesma pulga atrás da orelha. Tornou-se marinheiro. A convivência no porto e o prestígio do pai permitiram que ele embarcasse, já em sua primeira grande jornada, com destino ao Brasil, a Terra de Santa Cruz do tempo em que ele ouvira a história de gente nua, inocente e feliz.
Em 1510, quando chegou, o quadro tinha mudado um pouco. Os portugueses que chegaram antes já tinham se aventurado por trechos do litoral mais ao norte e mais ao sul do Porto Seguro inicial. Fundaram vilas, exploraram fortemente os recursos naturais disponíveis mais próximos dos assentamentos humanos e ganharam a inimizade dos “índios”, nome impróprio adotado para designar os nativos, considerando que a frota inicial tinha as Índias como destino.
Não foi difícil entender o porquê do descontentamento dos nativos. Seus conterrâneos lusitanos tinham violentado mulheres (E homens! E crianças!) e escravizado os inocentes que os cercavam com curiosidade. Chegavam notícias de casos isolados de bom entendimento, a depender da índole dos marinheiros que faziam o contato e da forma como estabeleciam sua relação com os nativos, mas seriam sempre casos isolados. A maioria dos grupos de colonizadores se colocava em situação de superioridade e queria explorar ao máximo as possibilidades de enriquecimento na terra nova. Diogo via nisso uma perspectiva sombria de futuro para a terra. A continuar dessa maneira, o porvir parecia fadado a consolidar um país de desigualdades, talvez maiores que aquelas que ele já conhecia em Lisboa e das quais ouvia falar no restante do mundo então conhecido. Não conhecia religião diferente, mas desconfiava das orientações católicas. O relato de Caminha, que martelava em sua cabeça desde menino, deixava clara a felicidade e a inocência daquelas pessoas.
Diogo era um bom garoto. Juntou-se a um grupo de marinheiros de sua confiança, meninos que cresceram juntos no burburinho do cais, em Lisboa. Exercia uma certa liderança. Foram rumo ao interior.
A ordem de Diogo ao pequeno grupo era jamais confrontar os grupos de nativos, buscar se aproximar deles amistosamente.
Os dez marinheiros portugueses nunca mais foram vistos. Jamais retornaram ao litoral. Ninguém jamais voltou a ter notícias deles. Viveram felizes entre os originários e só voltaram a ser lembrados muitos anos depois, quando indigenistas encontraram, já no século XX, a ocorrência de olhos azuis entre povos isolados. Não escravizaram indígenas, não empreenderam entradas e bandeiras, não exploraram pedras preciosas ou minérios.
Recivilizaram-se.
Escritos mais recentes dão conta de que a mesma região, onde brancos e indígenas teriam convivido em absoluta harmonia, foi posteriormente também refúgio de africanos escravizados que conseguiam escapar da cruel servidão a que eram submetidos por brancos de outra índole.
A professora interrompeu bruscamente o seminário de Alice.
- Menina! De onde você tirou essa história fantasiosa?
- Desculpe professora, quando comecei a escrever sobre Portugal das Grandes Navegações, quis contar a história a partir de um personagem e acabei me entusiasmando.
- Alice, o enredo é simpático, mas este é um seminário de História. Vou recomendar você à professora de Literatura, uma colega querida.
- Obrigado, professora.
- A descrição de Lisboa está até razoável, mas essa romantização da relação entre portugueses e indígenas do interior do Brasil está mais pra José de Alencar do que para algum historiador. Obrigado pelo esforço, você será aprovada, mas poderia ser melhor. Por favor, o próximo.
- Meu nome é Sávio.
- Sim. Qual o seu tema?
- As grandes navegações espanholas.
- Pode começar.
- Bom dia. Javier era um menino que vivia com a família no entorno do porto de Palos de la Frontera, de onde zarpou, aos 03 de agosto de 1492, a pequena esquadra composta pela nau Santa Maria e as caravelas Pinta e Nina, sob o comando de Cristóvão Colombo...
- O seminário está suspenso até segunda ordem. Acho melhor a gente mudar de assunto.
- Professora, a direção da escola disse pra encaixar a família em todas as disciplinas...
Rio de Janeiro, julho de 2022.
Música
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