Conforto e Medo
Num tempo desconhecido do passado, a humanidade vivia de modo diferente. Em comunhão com a natureza, ninguém antecipava o futuro, ninguém planejava seus dias e nem se defendia contra o imprevisto. Assim, viviam em paz. As exceções eram dois primos anêmicos, parecidos, solitários e frustrados. Chamavam-se Conforto e Medo. Eram sombras que viviam atrás das pessoas, e como reféns, tinham que segui-las para poder se movimentar. Medo era alongado e Conforto era gordo, mas os dois eram pretenciosos. Um se achava melhor que o outro e pensava que podia se tornar poderoso se a oportunidade certa se apresentasse, mas qual seria?
Gostariam de se tornar fortes, independentes, e dominar a humanidade. Sabiam que para isso acontecer, teriam que penetrar o interior das pessoas que seguiam, pois somente no coração humano poderiam crescer e virar parte da natureza delas. Mas encontrando-se mais e mais ignorados e fracos, Conforto e Medo nem bem conseguiam se manter atrás de alguém para permanecer vivos.
Num certo dia ensolarado, quando as pessoas nadavam num mar acolhedor, Conforto e Medo definhavam na areia. O sol do meio-dia batia no meio da cabeça das pessoas e não deixava que formassem sombras, de modo que os dois primos viraram resíduos agonizantes, memórias, ou germes de projetos futuros.
“Enchi o saco de ser ignorado e só existir como uma projeção escura de alguém exposto a luz!” queixou-se Medo.
“Temos que fazer um plano de ataque!” sugeriu Conforto.
“Que plano? Você é uma marica que só gosta de almofadas e coisas que as pessoas não precisam” contrariou Medo.
“E você, que outro dia se gabava ser capaz de secar a vida de qualquer um e agora está aí nas últimas?”
“Melhor não brigar, nos somos parecidos e dependemos um do outro” Concluiu Medo.
Conforto estava muito fraco para continuar discutindo, quando de repente, tendo o sol baixado um pouco no céu, a projeção de uma pequena sombra se formou atras de uma moça passando perto dele. Atraído pela oportunidade de dependência, característica essencial das sombras e parasitas, Conforto logo se fundiu com aquele esboço de sombra. Sentindo-se um pouco mais forte, disse ao primo:
“Marica ou não, tenho um plano que não só vai me tornar fortíssimo, mas como consequência da minha sedução, vai te transformar num rei!”
“Tá querendo dizer que eu vou reinar por sua causa? Tá louco? Sou o mais velho entre nós! sou eu que dei origem a você! Reclamou Medo.
“Ao contrário idiota! Você vai ver que a necessidade de mim é o que te bota em cena e te faz crescer!” retaliou Conforto.
“Contanto que eu seja salvo...” Medo capitulou.
Enraizando-se na sombra da moça, Conforto se transformou em alucinações que invadiram a cabeça dela. A primeira foi uma barraca multicolorida para defendê-la do sol, que já tinha ficado muito quente. Mas antes mesmo que a moça pudesse desejar aquela barraca, esta se transformou numa cabana de praia sobre espreguiçadeiras com colchões finos e macios, entre mesinhas cheias de refrigerantes. Quando essas alucinações contagiaram o coração da moça, ela pensou antes de adormecer sob uma árvore, num gramado ali perto, “Isso é o que todos nós precisamos pra praia ficar mais agradável e macia...”
Seus sonhos lhe mostraram uma casa que, ao achá-la indispensável para defendê-la dos elementos, a moça facilitou sem saber um pouco mais o crescimento de Conforto. Sentindo o ar refrigerado dessa casa, ela se perguntou como lhe foi possível viver sem aquilo. Enquanto isso, mais imagens de segurança para poupá-la das manifestações da natureza invadiram sua mente. Dispositivos tecnológicos lhe apareceram para prever o tempo, as tempestades e furacões, ajudando as pessoas a se preparar contra essas vicissitudes e poder planejar seus dias. “Como pudemos ser tão cegos para não imaginar essas coisas?” a moça pensou “tenho que descrever tudo isso pra todo mundo para que comecemos a fazer todas essas maravilhas!” decidiu com uma urgência até então desconhecida.
Depois que contagiou as outras pessoas ao fazê-las ver quanto mais segurança e comodidade teriam com tudo aquilo, elas se sentiram vulneráveis e o Medo cresceu um pouco na sombra de cada. Assim, não levou muito tempo para que as visões da moça se concretizassem. Dispositivos tecnológicos foram se empilhando e controles remotos se multiplicando. Logo a humanidade ficou orgulhosa em poder organizar seus dias com a ajuda de tudo aquilo, e até mesmo concebeu algo como “zona de segurança” em volta de cada um. Essa zona era a transformação do lar em uma área tão confortável e segura que todos perceberam ser difícil sair de dentro dela e deixaram que o Medo atingisse seus corações. Se um deles precisasse viajar para lugares diferentes, começava a fazer planos para replicar sua zona de segurança seja lá aonde fosse.
Conforto condicionou todo mundo ao uso de objetos artificiais, e Medo os ajudou a fugir de surpresas e a execrar o que não pudesse ser previsto. Como seu primo lhe havia dito, ele começou a reinar, tornando-se tão forte e volumoso que todos os heróis se acovardavam diante dele. Transformou as pessoas em seus escravos, e cada vez que alguém desistia de se aventurar em algo diferente, ele se tornava mais forte.
Mas havia um monstro que era impossível aniquilar. Era imprevisível, gratuito e injusto. Não obedecia a nenhum controle remoto, ou a cordões de isolamento, ou quaisquer tipo de limite. Aquela coisa grotesca era errática, frequentemente abocanhando pessoas jovens e deixando de lado os que seriam melhores candidatos pra sair do planeta. Mas não tinha sido sempre um monstro, pois antes que Conforto mudasse a vida de todos, era somente um evento da natureza. Seu nome era Morte. Os esforços das pessoas para dar cabo dela, promovidos pelo Medo, não serviram pra nada além de tornar o próprio medo mais forte, traiçoeiro e sinistro. Nunca tendo conseguido ser mais que uma sombra, ele era muito burro, mas ainda assim percebeu que aquele “monstro” era seu aliado, continuando a fazê-lo crescer e ficar mais nítido quando se confrontavam. Ao invés de retaliar, Medo viu que era melhor lhe retribuir com gentileza.
Através da dependência de seu primo, Conforto continuou a se fortalecer e deu origem a mais almofadas, pílulas, controles remotos, computadores que traziam o mundo inteiro para dentro da zona de segurança de cada um e velocidade na comunicação entre todos. Criou o reino das experiencias virtuais e mais do que seguras, e a impossibilidade de discernir o verdadeiro do falso. Eliminando assim a diferença entre a importância do autêntico e a superficialidade do ilusório, Conforto dominou a vida de todos, levando-os a só ver aspereza no mundo e se tornarem mais medrosos, mais jurados a ele e a seu primo. Cresceu numa bola invisível e gigante de gosma, atando os movimentos das pessoas e turvando a sua vontade de fazer qualquer coisa.
A essa altura, Medo estava enorme, uma presença disforme e ilimitada de escuridão e engano. Sentou-se num trono e promoveu tanta defensiva entre as pessoas que mais e mais agressividade se originou em cada uma. Assim, ele deu origem `as guerras, infinitas fontes de alimentação para a Morte, e assegurou sua soberania pra sempre.
Medo é a distância de Deus; distância de nós mesmos. Conforto é a variedade de máscaras do medo.
( Parte de minha coleção de contos Ayahuasca Anchor, a sair em breve)
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