CINEMA
- Léo Viana
- 18 de dez. de 2022
- 5 min de leitura

O Lívio tinha se tornado cinéfilo ainda muito cedo. O pai, Seu Ademar, viúvo precoce e com o filho único pra criar, descobriu que o garoto, muito mais inquieto que a média das crianças da família, se acalmava fácil e se mantinha quieto no escurinho do cinema e que seu interesse nos filmes, nos atores e atrizes, nos créditos e tudo o mais, poderia sinalizar coisa boa. Antes tinha tentado o catecismo, o escotismo, esportes diversos, música, etc. Mas nada surtia, no moleque, o mesmo efeito apaziguador que o cinema. O inconveniente é que os cinemas de rua, que outrora se espalhavam pela cidade inteira, não existiam mais. Seu Ademar, nas idas e vindas com o Lívio ao shopping do bairro vizinho, onde agora ficavam as salas de exibição, ia sempre contando ao filho como também se apaixonara pelo cinema, frequentando aquele que tinha virado igreja na esquina da avenida principal, o outro que agora era uma drogaria gigante ao lado do supermercado, onde outrora também funcionaram duas salas, e um terceiro onde se instalara uma loja de bugigangas.
Como única alternativa ao shopping, a novidade recente era um pequeno cineclube, mantido pelo Alvarenga. O Alvarenga era um misto de intelectual, boêmio, professor, ativista social, guru e humorista, sempre disposto a um bom papo sobre cinema e amenidades. Tudo entremeado por tiradas de humor referenciadas nos clássicos. Sempre se despedia com o “Hasta la vista, Baby”, do Exterminador do Futuro, filme do qual, aliás, nem gostava. E depois de fechar os botequins mais vagabundos, altas horas, sempre deixava o balcão dizendo “Sempre teremos Paris”, como Bogart em Casablanca, ainda que o contexto fosse muito diferente. Seu sentimento era o de representar Alfredo, o velho projecionista de Cinema Paradiso, mesmo que o subúrbio carioca em nada lembrasse a Sicília, salvo no específico caso da máfia... Corta!
Depois que os filhos cresceram e que se separou da mulher, na Zona Sul, o Alvarenga ocupou um galpãozinho que tinha herdado de um tio e criou o cineclube, que mantinha com o dinheiro da aposentadoria de professor universitário. Alguns amigos, ex-colegas de militância, firmaram com ele um pacto de ajuda. O clubinho até recolhia uma pequeníssima mensalidade de quem se interessasse, cobrava uns ingressos voluntários, mas isso geralmente mal bastava para as despesas de limpeza e manutenção. O custo da energia, dos impostos, da coleção e tudo o mais vinha mesmo das doações dos amigos queridos e das reservas do Alvarenga.
O acervo vinha crescendo, de modo que não demorou até que o cineclube pudesse rivalizar na preferência do pequeno Lívio com os cinemas do Shopping. Foi assim que ele trocou as sagas da Marvel, Disney e Pixar por Fellini, Antonioni, Godard, Bergman, Costa-Gavras e, vá lá, Spielberg, Woody Allen, Kubrick, Tarantino. Ao contrário da maioria dos garotos de sua idade, gostava dos brasileiros, de Glauber a Breno Silveira, de Humberto Mauro aos Barreto, passando por Jorge Furtado, Roberto Farias, Cláudio Assis e Fernando Meirelles.
Anos depois, aos 17 de idade, foi no escurinho do cineclube que passou a frequentar ainda criança, depois de muitos filmes e agora já assistente do Alvarenga na gestão do espaço, que o Lívio conheceu a Lívia. Coincidências à parte, a mocinha tinha 16 aninhos e a mesma paixão louca por cinema, cultivada pela mãe, Dona Arlete. A história das duas começava, como a do Alvarenga, na Zona Sul. O ex-marido da Dona Arlete, autointitulado conservador e homem de bem, tinha perdido nas casas de jogo e na prostituição tudo o que herdara da família de sobrenome. Por último, perdeu a mulher e as duas filhas, que se refugiaram no subúrbio atrás da paz, também perdida. O destino as levou para as proximidades do cineclube. Acostumadas ao cinema de arte nas confortáveis salas de Ipanema e Leblon, adaptaram-se facilmente ao clubinho. E menos facilmente ao Subúrbio.
Neste ponto, o roteirista da história deles parece ter perdido a mão, mas foi suficientemente criativo para juntar Lívio e Lívia diante de Charlie Chaplin e Jacques Tati. O primeiro beijo, claro, foi assistindo Casablanca.
O mesmo roteirista impediu que eles cursassem a faculdade de cinema, o que tornaria a história óbvia demais, mas fez de ambos professores, ele de matemática, ela de história. Marcaram o casamento assistindo pela enésima vez ao final de Blade Runner.
A entrada dos noivos na igrejinha do subúrbio, sob os atentos olhares dos convidados, do padrinho solitário (o Alvarenga, claro!!) e dos pais de ambos, foi embalado pelos temas de Carruagens de Fogo, A Pantera Cor de Rosa e Bye Bye Brasil. O buquê saiu voando para o alto como o osso de 2001, uma Odisseia no Espaço. Lançamento ensaiado muitas vezes pela Lívia.
O casamento rendeu uma filha, Olívia (ah, o roteirista...), cujo nome homenageia a xará Newton-John e Olívio, um menino. A escolha do nome dele foi só mesmo pra fechar a história.
Dizem por aí que, na medida em que sua própria história foi sendo construída e contada, sonharam juntos com a materialização do apoteótico final de Bastardos Inglórios, do Tarantino, em que ocorreria a queima triunfal dos inimigos da cultura, do cinema, da música, das artes plásticas, da educação. Não contam pras crianças, porque acham um tanto violento. Elas, as crianças, ainda se divertem com Chaplin e só vez ou outra são submetidos a um filme da Disney ou da Pixar. Mas já riem de Monty Python e de seu louco humor britânico, um antecessor histórico de grupos como o Porta dos Fundos.
O sonho, entretanto, permanece. E os últimos quatro anos de Brasil, convenhamos, foram terreno fértil pra sonhos assim. Sonham produzir ao menos um longa, pra coroar a paixão pela sétima arte.
Estão procurando as locações. Não sabem ainda o que o roteirista está pensando pra eles, mas fazem questão do incêndio da última cena, com generais, religiosos reacionários, latifundiários, patriotas de camisa da CBF, negacionistas científicos, blogueiros golpistas, jornalistas mentirosos, juízes inidôneos e outros personagens recentes ardendo dentro de um cinema. Como a cópia é escancarada, Lívio e Lívia tem até uma carta pronta para o Tarantino, pedindo a autorização para a adaptação da cena.
O roteirista só não decidiu ainda se junta a Dona Arlete com o Seu Ademar ou com o Alvarenga. Ou se, numa concessão à contemporaneidade, faz deles um trisal. Ou ainda se começa um outro roteiro, porque a irmã da Lívia parece ter desaparecido nas entrelinhas.
Mas isso pode ficar pro making off...
Rio de Janeiro, dezembro de 2022.
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