Lisa
ESTUDO DE PERSONAGEM POSSÍVEL
BRASIL, DÉCADA DE 90 E INÍCIO DOS ANOS 2000. PERSONAGEM NASCE E CRESCE EM UMA FAMÍLIA SIMPLES DO SUBÚRBIO. PERSONAGEM IMPROVÁVEL, PADRÃO QUASE INALCANÇÁVEL DE PERFEIÇÃO.
Orgulho da família, a Lisa. Coisa linda!
O pai contrariara a mãe ao dar a ela o mesmo nome da menina inteligente dos Simpsons. Não imaginava que funcionaria tão bem. O moleque mais velho era uma cópia do Bart, tão preguiçoso quanto, além de inquieto e aprontador. As escolas do bairro, ao menos as mais próximas, já tinham uma certa prevenção a respeito dele. Foi considerado persona non grata em três delas, antes do fim do ensino fundamental. A irmã, ao contrário, pouco mais nova, era um modelo de estudante aplicada e inteligente, fenômenos que nem sempre caem no mesmo lugar.
A família, à exceção dos filhos, não guardava semelhança com a do seriado. Mãe e pai sérios, respeitados na vizinhança, sofriam com as frequentes encrencas do garoto e se enchiam de orgulho a cada conquista de Lisa.
Foi assim que a pequena se encheu de títulos ao longo da vida escolar. De rainha da primavera a campeã da olimpíada de matemática, passando pela presidência do grêmio. Foi representante de turma, oradora de formatura, capitã da equipe da escola nos jogos estudantis.
PERSONAGEM PÓS-ADOLESCENTE, ENTRA PARA A UNIVERSIDADE. MUITO ACIMA DA MÉDIA
Daí que ser aprovada no vestibular de História foi entendido como uma conquista menor por parte de seus pais e admiradores em geral, que apostavam em Medicina ou nos estimulantes salários das carreiras jurídicas.
Do alto de suas qualidades excepcionais, e para desespero de algum eventual crítico, Lisa era também um doce de pessoa. Pra suprema agonia dos meninos que tentavam se aproximar, ela era geralmente inteligente demais pra eles, capaz de entrar com profundidade em temas para os quais a maioria dos moleques precisaria de orientação acadêmica especializada e muitos anos de dedicação. Entendia de futebol mais que eles, de NBA, surf, automobilismo e de assuntos que a maioria desconhecia. Filosofia, mitologia, política. Conhecedora profunda da MPB. Tinha sido sempre à frente do seu tempo, mas também era a menininha fofa, fiel às amigas, capaz de se entreter com uma boa fofoquinha, mesmo preferindo o cinema europeu, que tinha descoberto em uma prateleira empoeirada da antiga locadora do bairro. Gostava de samba, torcia loucamente pela Mangueira e criticava os desfiles como uma jurada, descendo a detalhes quase imperceptíveis aos mortais.
SELECIONADA PARA IR AO EXTERIOR
Não foi surpresa quando conseguiu uma bolsa pra estudar fora. A Universidade se orgulhava de tê-la entre seus alunos. O brilhantismo de Lisa era assunto em toda parte. Os professores de mais de um departamento disputavam-na pra monitora. Nunca ficara sem orientador para pesquisa de iniciação científica.
O que era natural para todos, no entanto, não parecia ser para ela. Suburbana, família sem apertos, mas sem extravagâncias, Lisa jamais entrara num avião. Conhecia o mundo pelo cinema e pelo tanto que tinha lido nas bibliotecas da vida. A internet veio tardiamente, ajudou a consolidar conhecimentos, ver coisas atualizadas, saber das notícias em tempo real, mas ainda era uma menina do subúrbio no íntimo, mesmo que a formação, o empenho e a capacidade a empurrassem, quase inercialmente, para um tipo de glória acadêmica, um início de apogeu antecipado de uma carreira desde sempre talhada para o sucesso.
AMBIENTE: O BRASIL, QUE VINHA DO GOLPE DE 2016, CHAFURDA NA LAMA DO AUTORITARISMO CONSENTIDO. MÍDIA, JUSTIÇA, CONGRESSO E MILITANTES DIGITAIS FAZEM O SERVIÇO SUJO.
Segundo semestre de 2018. O Brasil passava por momentos dramáticos. O melhor presidente da história recente, personalidade reconhecida no mundo como o único líder capaz de unir um país de tantas iniquidades, havia sido denunciado e preso em uma operação que começara bem antes, esmiuçando de modo pouco claro, mas aparentemente muito efetivo, escândalos de corrupção envolvendo empreiteiras, Petrobras, políticos e empresários. Verdade que a acusação do presidente não tinha a necessária consistência, mas a repetição insistente e midiática das pantomimas de juízes e procuradores tinham criado as condições para que o Brasil mergulhasse no obscurantismo. Milhões de caixas de pandora se abriram e liberaram demônios que estavam confinados, muitas vezes no corpo e mente de gente aparentemente normal, capaz de criar filhos, conviver com as outras pessoas, encostar os cotovelos em balcões de botequim e até lecionar ou fazer pesquisa em escolas e universidades.
Lisa, ao longo de seu curso de História, tinha visto e discutido o golpe sobre Dilma Rousseff, a fatídica votação em que dezenas de deputados dedicaram o voto a suas famílias, filhinhos, filhinhas, até um que dedicou o momento à memória de um torturador, o mesmo que viria, um pouco depois, a personificar a barbárie na qual mergulhamos como nação, que destrói a Amazônia, mata seus defensores, destrói a memória da negritude, a cultura, os museus, os programas sociais, as empresas públicas, a saúde pública.
PERSONAGEM SE RETRAI. DÚVIDAS SOBRE O FUTURO E AS POSSIBILIDADES. CONSTRANGIMENTO MÁXIMO E ALGUMA IMATURIDADE EMOCIONAL
E ela tinha que decidir, no calor dos acontecimentos, após o Brasil ter decidido se entregar, voluntariamente, a um defensor da tortura e do arbítrio, onde é que iria dar continuidade aos seus estudos em Ciência Política, com a qual tinha se encantado enquanto estudava a Revolução Francesa. Muito Voltaire, Montesquieu, Diderot.
Um sentimento de vergonha, um constrangimento sem fim tinha se apoderado da consciência de Lisa ao fim da apuração da eleição. Se sentira mal, tempos antes, mesmo sem especial simpatia pelos Estados Unidos, quando da eleição de Trump. Para ela, extremamente dedicada aos estudos, o retrocesso era notável. Admirava tremendamente as universidades americanas, mas tinha decidido não pisar em solo estadunidense enquanto vivessem sob Trump. Entendia, como quase ninguém, a diferença entre política e o que vinha acontecendo com a ascensão da extrema direita. Havia deixado de ser uma discussão entre esquerda e direita pra se tornar uma discussão entre barbárie e razoabilidade.
Agora o Brasil tinha mergulhado na mesma lagoa de lodo. Lisa não viajara, mas ouvia e lia muito sobre a receptividade que o mundo havia dedicado ao Brasil recentemente. Os grandes líderes do início do século XXI queriam se aproximar do Brasil. Os naturais do mundo todo queriam vir viver aqui, onde Lisa crescera e se tornara uma promessa bem sucedida de pensadora que tinha como missão consolidar o melhor da formulação teórica brasileira, à luz dos conhecimentos que viria a adquirir nos grandes centros de formação da Europa.
LISA DECIDE NÃO IR. TEME. SE ENVERGONHA DEMAIS DO BRASIL
Não aguentou a pressão. Ninguém havia dito nada e os professores a aguardavam em Paris, Lyon, Bologna ou Oxford com o mesmo interesse, após a universidade brasileira onde Lisa estudava haver estabelecido contato com as congêneres europeias, dado o interesse da pequena na Ciência Política relacionada, na origem, à França setecentista. Mas Lisa não tinha coragem de sair para estudar política, encarar os professores da Sorbonne ou de outra grande universidade, a partir de um país que tinha acabado de eleger um biltre, um defensor do pior da humanidade, armamentista e simpático a ideais racistas e contrários ao que de melhor a humanidade produziu. A menina tinha pudores demais. Nada a convenceria a embarcar. Nem o amor de seus pais e professores ou a insistência de suas amigas e amigos de samba e futebol, de todo cientes de que se relacionavam com uma excepcionalidade intelectual, um cérebro privilegiado, um ponto fora da curva. Nem o mais convincente dos influenciadores seria capaz de convencer a menina Lisa da importância de sua ida a um centro de pesquisas internacional, inclusive para ver o Brasil de fora, com o necessário afastamento, para ajudar a construir um futuro que não levasse sequer resquícios desse capítulo infeliz da história, que parecia se aprofundar com a eleição do ex-capitão expulso do Exército por indisciplina e incompetência.
PERSONAGEM RECUPERA A CONFIANÇA
Foi na véspera do embarque para a França, aquele mesmo embarque que seria frustrado pela insegurança de Lisa diante da surpresa ruim que seu próprio país tinha lhe aprontado; frustrado pelo novo episódio da barbárie que tinha sido tão presente na história do Brasil e que pareceu regredir por um momento, quando milhões foram finalmente incorporados ao rol dos existentes, passando a ser empregados, estudantes, alimentados: pois foi neste momento crucial de sua própria existência, sobre a qual pairava um projeto de intelectual capaz de ser mais relevante que todas outras pessoas de seu círculo mais íntimo, em um futuro muito próximo; foi nessa hora que se sentou para ouvir música brasileira, sua tradicional terapia para os piores momentos, quando a leitura de grandes tratados de História, Sociologia ou Ciência Política, temas que ela adorava, ameaçavam lhe tirar a paz interior.
Pois foi entre playlists de Chico Buarque, então recentemente contemplado com o Prêmio Camões, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton, Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha, Paulinho da Viola, Cartola, Dona Ivonne Lara, Zé Kéti, Dominguinhos, Yamandu, Hamilton de Holanda, Ivan Lins, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Adoniram, Elis, Paulo Cesar Pinheiro, Baden, Vinicius, Edu Lobo, Cazuza, Eduardo Gudin, Vanzolini, Luiz Melodia, Tim Maia, Elton Medeiros, Wilson Batista, Nei Lopes, Elizeth Cardoso, Gal, Bethânia, Clara, Beth e muito mais, que ela recuperou o orgulho quase perdido. O Brasil era muito maior que a corja recém-eleita, tinha um futuro que ela ajudaria a construir, mesmo vivendo um revés claramente passageiro.
Nem teve tempo de reler Guimarães Rosa, Machado, Alencar, Euclides, Ariano, Graciliano, Nelson Rodrigues.
Embarcou confiante, mesmo sofrendo por deixar sua terra em lençóis tão fedidos. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!!”
Fez bonito lá, claro. Emendou na pandemia e só volta agora, em 2022. Marcou passagem pra setembro. O início do renascimento está marcado para outubro!
E Lisa deveria existir. Talvez exista.
Ouça a Playlist de Samba da Lisa!
Playlist da Lisa!
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