Jorge Pontual

30 de out de 2020

Seis poemas de Elizabeth Bishop

Tradução: Jorge Pontual, para Criativos!

foto: Jorge Pontual / Coleção particular


 
Uma Arte
 

 
A arte da perda é fácil ter;
 
por tanta coisa cheia de intenção
 
de ser perdida não dá pra sofrer.
 

 
Perca algo todo dia. Perder
 
chaves aceite, junto com a aflição.
 
A arte da perda é fácil ter.
 

 
Treine perder muito sem se deter:
 
lugares, e nomes, a comichão
 
de viajar. Nada fará sofrer.
 

 
Perdi jóias da mamãe. E dizer
 
que perdi casas que amei de paixão.
 
A arte da perda é fácil ter.
 

 
Perdi duas cidades. E o prazer
 
de um continente na palma da mão.
 
Sinto falta mas não dá pra sofrer.
 

 
- Até perder você (a voz, o ser
 
que eu amo) não devia mentir. Não,
 
a arte da perda se pode ter
 
embora pareça (diga!) sofrer.
 


 
Soneto
 

 
Eu careço de música que flua
 
Por meus dedos inquietos e sensíveis,
 
Por meus lábios trêmulos, irascíveis,
 
Com melodia, lenta, clara e crua.
 
Ah, a doce ginga que continua,
 
De alguma canção que afaste o desgosto,
 
Uma canção como água no meu rosto,
 
Que me molhe inteira, lavada e nua!
 
Há um feitiço que vem da melodia:
 
Magia do sossego, respirar
 
Calmo, que mergulha no fim do dia
 
Pela mansidão profunda do mar,
 
E flutua pra sempre no abandono,
 
No regaço do ritmo e do sono.
 


 
O Shampoo
 

 
Nas rochas, explosões caladas,
 
os líquens vão
 
se abrindo em ondas, em camadas.
 
Copiam sempre
 
os anéis da lua, embora não
 
mudem de lugar, que a gente lembre.
 

 
Assim o céu nos dá guarida,
 
mas é você,
 
minha querida,
 
precipitada e intransigente;
 
só que o Tempo, a gente vê,
 
é no mínimo indulgente.
 

 
Cada estrela no seu cabelo,
 
na água fria,
 
com tanto zelo
 
voa tão nua?
 
-- Vem, deixa eu lavá-lo nesta bacia,
 
torta e brilhante como a lua.
 


 
O Tatu
 

 
Estamos na estação
 
de toda noite ver
 
subir um frágil e ilegal balão.
 
Alto, até se perder,
 

 
voando atrás de um santo
 
que aqui tem devoção,
 
o papel pulsa e se enche de luz
 
igual a um coração.
 

 
Contra o céu é difícil
 
separá-lo dos astros--
 
ou melhor, planetas--coloridos:
 
Venus se pondo, ou Marte,
 

 
ou o pálido verde. Com o vento,
 
arde e vacila, treme inteiro,
 
e navega entre os braços
 
em forma de pipa do Cruzeiro,
 

 
fugindo, sumindo, solene
 
e firme nos deixando,
 
ou, numa lufada contrária,
 
súbito perigo se tornando.
 

 
Ontem à noite caiu um grande.
 
Explodiu como um ovo de fogo
 
no morro atrás da casa.
 
As chamas desceram. Vimos o casal
 

 
de corujas voar mais e mais alto,
 
um remoinho preto e branco
 
manchado de rosa em baixo, até
 
gritarem longe do barranco.
 

 
O antigo ninho de corujas deve ter queimado.
 
Com muita pressa, sozinho,
 
um tatu brilhante deixou a cena,
 
tingido de rosa, cabeça baixa, rabo baixo,
 

 
e aí um bebê coelho pulou pra fora,
 
orelhas curtas, para nossa surpresa.
 
Tão fofo!-- um punhado de cinza intangível
 
com olhos fixos, incandescentes.
 

 
Beleza demais, enganadora!
 
Ó fogo cadente, lancinante grito
 
e uma fraca manopla fechada
 
ignorante contra o céu infinito!
 


 
Suicídio de um ditador moderado (Rio, 24/8/1954)
 

 
Hoje é um dia em que verdades virão à tona, talvez;
 
vazarão dos telefones dependurados
 
minando a força dos painéis coloridos das telefonistas;
 
cairão das janelas, voarão das sacadas,
 
-- vagos, levemente banais conteúdos
 
de cinzeiros esvaziados; sujarão nossos dedos
 
como a tinta de jornais ainda não lidos,
 
borrando como as fotos fora de foco
 
de caras tortas que mancham nossos casacos,
 
nossos casacos tropicais, como mariposas esmagadas.
 

Hoje é um dia em que aqueles que trabalham
 
ficam à-toa.

Aqueles que folgaram tem que trabalhar
 
e depressa, pra dar conta do recado
 
com pouco ou nenhum cuidado.
 
Os jornais estão vendidos; as portas da banca
 
despencam. Mas assim mesmo, na noite
 
as manchetes escreveram a si mesmas, veja só, nas ruas
 
e calçadas por toda parte; um sedimento esparramado
 
até nos primeiros andares dos edifícios.
 

Este é um dia que é bonito também,
 
e quente e claro. Às sete da manhã eu vi
 
os cães levados a passear na praia famosa
 
como sempre, num brilhante amanhecer cinza-esverdeado,
 
deixando as pegadas a secar no chão molhado.
 
A linha das ondas estava firme e o rosado,
 
repartido arco-íris pairava sobre elas.
 
Às oito dois garotinhos soltavam pipas.
 


 
Balada do Ladrão da Babilônia
 

 
Nos belos morros do Rio
 
Tão feia mancha vigora:
 
Os pobres que vem pro Rio
 
E não podem ir embora.
 

 
Nesses morros um milhão,
 
Um milhão de andorinhas,
 
Tal confusa migração
 
Ali pousa e se aninha,
 

 
Seu ninho, ou casa, erguendo
 
De quase nada, ou de ar.
 
Voaria com o vento,
 
De tão leve a pousar.
 

 
Mas fica e se esparrinha,
 
E mais gente se amofumba.
 
Há o morro da Galinha,
 
E o morro da Catacumba;
 

 
Há o morro do Querosene,
 
Do Esqueleto, uma colônia,
 
Morro do Espanto, perene,
 
E o morro da Babilônia.
 

 
Micuçú era ladrão,
 
Da sociedade inimigo.
 
Escapara da prisão
 
Três vezes, esse bandido.
 

 
Não sabem quantos matou
 
(mas nunca estuprou ninguém),
 
Da última vez que escapou
 
Dois tiras feriu também.
 

 
Disseram, “Foi estar com a tia,
 
Que o criou, a dona Sônia.
 
Ela tem uma vendinha
 
No morro da Babilônia”.
 

 
E estava mesmo com a tia,
 
Tomando a última cana.
 
Disse, “Tenho que ir tia,
 
Que já já chegam os cana”.
 

 
“Noventa anos me deram.
 
Mas quem quer tamanha insônia?
 
Noventa horas eu quero,
 
No morro da Babilônia.
 

 
Embaixo dele, o oceano
 
Que subia até o céu,
 
Como uma parede, plano,
 
Onde, longe pra dedéu,
 

 
Via barcos se mexer
 
Cada um como um mosquito,
 
Até desaparecer;
 
E ele sabia, “Estou frito”.
 

 
Ouviu as cabras berrar.
 
Ouviu crianças gemer;
 
As pipas a flutuar;
 
E sabia, “Vou morrer”.
 

 
Um urubu passou tão perto
 
Que viu o seu pescoção.
 
E gritou de peito aberto
 
“Inda não, meu, inda não!”
 

 
Micuçú tava escondido
 
No meio do matagal,
 
Acuado, olhar perdido
 
E no mar via um farol.
 

 
O farol olhou pra ele,
 
Naquela noite de insônia.
 
Tinha fome e sede, ele,
 
No morro da Babilônia.
 

 
Um sol feio, amarelo,
 
Como um ovo cru num prato -
 
Saiu do mar. Cuspiu nele,
 
Sabia que era seu fado.
 

 
Viu a longa praia branca
 
E as pessoas a nadar,
 
As toalhas e as barracas,
 
E os PMs a caçar.
 

 
As pessoas lá bem longe
 
Eram manchas coloridas
 
E as cabeças entre as ondas
 
Flutuavam como cocos.
 

 
Era cedo, oito e meia.
 
Viu um soldado subir,
 
Vindo em cima. Atirou,
 
Errou, a última vez.
 

 
Ouviu o soldado perto,
 
Sem vê-lo, só pressentido.
 
Micuçú saltou pra longe.
 
Levou um tiro no ouvido.
 

 
Ouviu um bebê chorar
 
Longe, longe em sua mente
 
E os cães a latir, latir.
 
E aí Micuçú morreu.
 

 
Tinha uma pistola Taurus,
 
E só as roupas do corpo,
 
Com dois contos nos seus bolsos
 
No morro da Babilônia.
 

 
Esta manhã os PMs
 
Estão de volta à favela;
 
Seus fuzis e capacetes
 
Brilham na chuva magrela.
 

 
Micuçú tá enterrado.
 
Outros dois são o xabu,
 
Mas não são tão perigosos
 
Quanto o pobre Micuçú.
 

 
Nos belos morros do Rio
 
Tão feia mancha vigora:
 
Os pobres que vem pro Rio
 
E não podem ir embora.
 

 
Há o morro do Querosene,
 
Do Esqueleto, uma colônia,
 
Morro do Espanto, perene,
 
E o morro da Babilônia.


Jorge Pontual é jornalista e tradutor.


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