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Seis poemas de Elizabeth Bishop

Tradução: Jorge Pontual, para Criativos!


foto: Jorge Pontual / Coleção particular



Uma Arte A arte da perda é fácil ter; por tanta coisa cheia de intenção de ser perdida não dá pra sofrer. Perca algo todo dia. Perder chaves aceite, junto com a aflição. A arte da perda é fácil ter. Treine perder muito sem se deter: lugares, e nomes, a comichão de viajar. Nada fará sofrer. Perdi jóias da mamãe. E dizer que perdi casas que amei de paixão. A arte da perda é fácil ter. Perdi duas cidades. E o prazer de um continente na palma da mão. Sinto falta mas não dá pra sofrer. - Até perder você (a voz, o ser que eu amo) não devia mentir. Não, a arte da perda se pode ter embora pareça (diga!) sofrer.

Soneto Eu careço de música que flua Por meus dedos inquietos e sensíveis, Por meus lábios trêmulos, irascíveis, Com melodia, lenta, clara e crua. Ah, a doce ginga que continua, De alguma canção que afaste o desgosto, Uma canção como água no meu rosto, Que me molhe inteira, lavada e nua! Há um feitiço que vem da melodia: Magia do sossego, respirar Calmo, que mergulha no fim do dia Pela mansidão profunda do mar, E flutua pra sempre no abandono, No regaço do ritmo e do sono.

O Shampoo Nas rochas, explosões caladas, os líquens vão se abrindo em ondas, em camadas. Copiam sempre os anéis da lua, embora não mudem de lugar, que a gente lembre. Assim o céu nos dá guarida, mas é você, minha querida, precipitada e intransigente; só que o Tempo, a gente vê, é no mínimo indulgente. Cada estrela no seu cabelo, na água fria, com tanto zelo voa tão nua? -- Vem, deixa eu lavá-lo nesta bacia, torta e brilhante como a lua.

O Tatu Estamos na estação de toda noite ver subir um frágil e ilegal balão. Alto, até se perder, voando atrás de um santo que aqui tem devoção, o papel pulsa e se enche de luz igual a um coração. Contra o céu é difícil separá-lo dos astros-- ou melhor, planetas--coloridos: Venus se pondo, ou Marte, ou o pálido verde. Com o vento, arde e vacila, treme inteiro, e navega entre os braços em forma de pipa do Cruzeiro, fugindo, sumindo, solene e firme nos deixando, ou, numa lufada contrária, súbito perigo se tornando. Ontem à noite caiu um grande. Explodiu como um ovo de fogo no morro atrás da casa. As chamas desceram. Vimos o casal de corujas voar mais e mais alto, um remoinho preto e branco manchado de rosa em baixo, até gritarem longe do barranco. O antigo ninho de corujas deve ter queimado. Com muita pressa, sozinho, um tatu brilhante deixou a cena, tingido de rosa, cabeça baixa, rabo baixo, e aí um bebê coelho pulou pra fora, orelhas curtas, para nossa surpresa. Tão fofo!-- um punhado de cinza intangível com olhos fixos, incandescentes. Beleza demais, enganadora! Ó fogo cadente, lancinante grito e uma fraca manopla fechada ignorante contra o céu infinito!

Suicídio de um ditador moderado (Rio, 24/8/1954) Hoje é um dia em que verdades virão à tona, talvez; vazarão dos telefones dependurados minando a força dos painéis coloridos das telefonistas; cairão das janelas, voarão das sacadas, -- vagos, levemente banais conteúdos de cinzeiros esvaziados; sujarão nossos dedos como a tinta de jornais ainda não lidos, borrando como as fotos fora de foco de caras tortas que mancham nossos casacos, nossos casacos tropicais, como mariposas esmagadas.

Hoje é um dia em que aqueles que trabalham ficam à-toa.

Aqueles que folgaram tem que trabalhar e depressa, pra dar conta do recado com pouco ou nenhum cuidado. Os jornais estão vendidos; as portas da banca despencam. Mas assim mesmo, na noite as manchetes escreveram a si mesmas, veja só, nas ruas e calçadas por toda parte; um sedimento esparramado até nos primeiros andares dos edifícios.

Este é um dia que é bonito também, e quente e claro. Às sete da manhã eu vi os cães levados a passear na praia famosa como sempre, num brilhante amanhecer cinza-esverdeado, deixando as pegadas a secar no chão molhado. A linha das ondas estava firme e o rosado, repartido arco-íris pairava sobre elas. Às oito dois garotinhos soltavam pipas.

Balada do Ladrão da Babilônia Nos belos morros do Rio Tão feia mancha vigora: Os pobres que vem pro Rio E não podem ir embora. Nesses morros um milhão, Um milhão de andorinhas, Tal confusa migração Ali pousa e se aninha, Seu ninho, ou casa, erguendo De quase nada, ou de ar. Voaria com o vento, De tão leve a pousar. Mas fica e se esparrinha, E mais gente se amofumba. Há o morro da Galinha, E o morro da Catacumba; Há o morro do Querosene, Do Esqueleto, uma colônia, Morro do Espanto, perene, E o morro da Babilônia. Micuçú era ladrão, Da sociedade inimigo. Escapara da prisão Três vezes, esse bandido. Não sabem quantos matou (mas nunca estuprou ninguém), Da última vez que escapou Dois tiras feriu também. Disseram, “Foi estar com a tia, Que o criou, a dona Sônia. Ela tem uma vendinha No morro da Babilônia”. E estava mesmo com a tia, Tomando a última cana. Disse, “Tenho que ir tia, Que já já chegam os cana”. “Noventa anos me deram. Mas quem quer tamanha insônia? Noventa horas eu quero, No morro da Babilônia. Embaixo dele, o oceano Que subia até o céu, Como uma parede, plano, Onde, longe pra dedéu, Via barcos se mexer Cada um como um mosquito, Até desaparecer; E ele sabia, “Estou frito”. Ouviu as cabras berrar. Ouviu crianças gemer; As pipas a flutuar; E sabia, “Vou morrer”. Um urubu passou tão perto Que viu o seu pescoção. E gritou de peito aberto “Inda não, meu, inda não!” Micuçú tava escondido No meio do matagal, Acuado, olhar perdido E no mar via um farol. O farol olhou pra ele, Naquela noite de insônia. Tinha fome e sede, ele, No morro da Babilônia. Um sol feio, amarelo, Como um ovo cru num prato - Saiu do mar. Cuspiu nele, Sabia que era seu fado. Viu a longa praia branca E as pessoas a nadar, As toalhas e as barracas, E os PMs a caçar. As pessoas lá bem longe Eram manchas coloridas E as cabeças entre as ondas Flutuavam como cocos. Era cedo, oito e meia. Viu um soldado subir, Vindo em cima. Atirou, Errou, a última vez. Ouviu o soldado perto, Sem vê-lo, só pressentido. Micuçú saltou pra longe. Levou um tiro no ouvido. Ouviu um bebê chorar Longe, longe em sua mente E os cães a latir, latir. E aí Micuçú morreu. Tinha uma pistola Taurus, E só as roupas do corpo, Com dois contos nos seus bolsos No morro da Babilônia. Esta manhã os PMs Estão de volta à favela; Seus fuzis e capacetes Brilham na chuva magrela. Micuçú tá enterrado. Outros dois são o xabu, Mas não são tão perigosos Quanto o pobre Micuçú. Nos belos morros do Rio Tão feia mancha vigora: Os pobres que vem pro Rio E não podem ir embora. Há o morro do Querosene, Do Esqueleto, uma colônia, Morro do Espanto, perene, E o morro da Babilônia.

 

Jorge Pontual é jornalista e tradutor.


 

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