Uma história repugnante
O leiloeiro Alberto Lopes anunciou em seu portal na internet um pregão on line em que oferecerá, entre outros itens, uma declaração com firma reconhecida em cartório, do militar da Aeronáutica Marco Aurélio Carvalho dando detalhes sobre a tortura e a morte do preso político Stuart Edgar Angel Jones.
Os episódios aconteceram em 15 de maio de 1971, na Base Aérea do Galeão. O pregão ocorrerá no dia 5 de abril próximo, a partir das 19h. O endereço do leiloeiro é Estrada Coronel Pedro Corrêa, 740 - sala 515, no bairro de Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
Diz o site do leiloeiro (https://albertolopesleiloeiro.com.br/peca.asp?ID=16541288): “O documento contém duas páginas datilografadas, com assinatura do oficial reconhecida em cartório, na data de 30 de março de 1976. Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores, sobre os momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil.”
O site informa, ainda, que o lance mínimo inicial é de R$ 800.
O militar Marco Aurélio Carvalho informa no seu texto que serviu durante dois anos na Base Aérea, do Galeão, sendo “oficial da área de informações”. Diz que participou da prisão e do interrogatório de Stuart, que, ele afirma, foi pendurado no pau-de-arara e submetido a choques elétricos e afogamentos. Assim, Carvalho é réu confesso das torturas em Stuart.
Ele afirma ainda que, depois disso, o preso foi levado ao pátio da base, amarrado ao parachoque de um jipe, sendo em seguida arrastado.
No essencial, essas informações não são inéditas. A tortura e a morte de Stuart tinham sido denunciadas numa corajosa carta do ex-preso Alex Polari de Alverga, que conseguiu ver, por entre as grades da janela de sua cela no Galeão, o martírio de Stuart e seu sufocamento ao ter a boca colocada no cano de descarga do jipe.
O episódio nos permite, porém, algumas reflexões sobre a Lei da Anistia e suas interpretações.
A lei anistiou crimes políticos e “crimes conexos” a eles. É possível considerar os crimes cometidos pelos assassinos de Stuart como crimes conexos aos que Stuart era acusado de ter cometido (participar de uma organização clandestina que lutava contra a ditadura)?
Ora, “crime conexo” a um assalto a banco, por exemplo, é o roubo de um carro a ser usado na operação. Assim, o crime maior incorpora, para efeito penal, o menor. Mas um torturador que, por hipótese, estupra uma presa política estará cometendo um “crime conexo” ao crime que teria sido cometido por ela?
O absurdo dessa interpretação é evidente.
No entanto, ela tem sido aceita (até pelo STF!) para inocentar torturadores de presos políticos.
Mais: é sabido que a anistia não foi estendida aos opositores da ditadura acusados de terem cometidos o que esta última classificou de “crimes de sangue”. Assim, ficaram excluídos da anistia militantes políticos que tivessem participado de ações armadas com mortos ou feridos. Por isso, mesmo depois de a anistia ter sido aprovada, muitos opositores da ditadura continuaram presos, só ganhando a liberdade com a modificação da Lei de Segurança Nacional, que permitiu aos advogados de defesa pedirem o recálculo e a revisão das penas.
Como, então, essa coisa de “crimes de sangue” não se estendeu aos crimes dos agentes da ditadura, permitindo que – além do absurdo da interpretação dos tais “crimes conexos” – eles tenham sido beneficiados com a anistia, mesmo tendo assassinado presos?
Bom, dito isso, resta registrar minha repulsa pelo fato de que há gente (o próprio torturador ou parentes seus e o leiloeiro) querendo ganhar dinheiro com episódios desse tipo.
É de dar asco.
PS – Depois que a denúncia começou a circular, o leiloeiro retirou este item do pregão. Ele vai se realizar na data prevista, mas o documento do torturador confesso não mais será leiloado.
Escute e veja!
Thiago Kobe e videoarte do Instituto Ipê
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