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Quanto à Imaginação

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   Me lembro minha mãe me contar, que quando foi levar minha irmã, então adolescente, para ir ver um filme do Elvis, tinha até polícia na rua do cinema para conter a excitação dos jovens.



Anos mais tarde, quando os Beatles ganharam sucesso mundial, lembro do encanto que todos nós sentíamos quando qualquer um de seus filmes entrava em cartaz. Colecionávamos as fotos que encontrávamos deles em jornal, revistas, fosse o que fosse. As meninas discutiam entre si qual deles preferiam, vivendo o sonho criado a volta daqueles “meninos” doces, delicados, mas audazes. A espera pela chegada de seus LPs no Brasil era intensa.


Começava com as músicas tocando no radio. Que felicidade, quando, de um momento pra outro, irrompia algum dos hits que já tinha tomado conta de nossos corações. “Quando vai estar à venda?” era o que todos nós pensávamos.  “Na Modern Sound você encontra,” me dizia uma amiga que podia comprar LPs importados, e por causa disso tinha grande popularidade com outros jovens. Aqueles discos novos tinham um cheiro delicioso, que ficava associado não só às terras distantes de onde vinham como aos grupos musicais neles gravados.


   A loja Modern Sound vendia discos de todo tipo de música, mas era a meca do Rock’n Roll no Rio. Que emoção entrar nela, e que medo também. Medo de ser considerado “babaca” por não saber dizer direito o nome de alguma música, ou de não poder comprá-la. Pois além da espera por essas músicas, tínhamos também que decifrar seu nome em inglês, que a maioria de nós não falava, e saber como enunciá-lo ao vendedor dos discos, fosse na Modern Sound ou numa loja mais humilde e financeiramente acessível. Esse momento também era assustador e emocionante, como um teste de nosso valor.


   Claro que, assim como Elvis, antes deles, os Beatles tinham uma qualidade “numinosa”, para usar um dos termos do meu último artigo. Levavam suas fãs a verdadeiros transes. Na mistura que inspiravam de histerismo, admiração sem limites, e êxtase, eles lhes davam a oportunidade de se apaixonar pelo “divino”, ou por quem sentiam como divindades. Para resumir, o fato de o VCR ainda não ter sido inventado, a falta de disponibilidade de programas e filmes estrangeiros na televisão (a não ser enlatados americanos, talvez) e a raridade das imagens fotografadas ou filmada daqueles ídolos era solo adequado para a germinação de um tipo de adoração religiosa.


   Sem dúvida alguma, tanto Elvis, como os Beatles (e alguns outros depois) traziam não somente novidade absoluta, como grande qualidade. Mas o que se juntava a essas características e os engrandeciam a uma dimensão transcendental era também a imaginação despertada pela raridade de suas aparições e da visibilidade de suas imagens. Por isso, estórias eram certamente inventadas sobre encontros fictícios com eles, que podiam até mesmo obliterar a diferença entre fatos reais e imaginários.  Lembro de minha prima me contando que uma de suas amigas se deparou com Paul MacCartney numa das ruas de Londres, mas desmaiou antes de poder lhe dizer qualquer coisa. Só ouvir tamanho blefe, em que obviamente acreditei, fiquei me perguntando durante noites a fio o que faria se um encontro inesperado com Paul me tivesse ocorrido. Talvez, a frustração de não falar inglês ainda adicionava mais grandeza aos Beatles, como se a impossibilidade de comunicação verbal desse também a eles uma dimensão extraplanetária.


   Era bom poder adorar; viver nesse tipo de sonho que tem o poder de transformar ou de fazer renascer o quotidiano, pois os dias em que o acesso aos Beatles era maior, fosse através de um disco novo, de poder dançar ao som da sua música em alguma festa, ou de ver um filme em que eles apareciam, eram dias transcendentes. Amigos eram avaliados em função do quanto gostavam deles. Por isso, mal pude acreditar quando ouvi que uma jovem de parentesco distante, elegia Frank Sinatra como cantor de sua preferência. Mais do que caretice, aquilo soava como um sacrilégio.


   A espera desapareceu, a sede pelo visual foi afogada, e a necessidade de imaginar, essa então, se afasta a passos largos. O tipo de adoração “religiosa” que os Beatles causavam não existe, certamente por causa da oferta infinita de popstars, da intoxicação de imagens de tudo quanto é tipo, e da gratificação imediata do acesso a qualquer música. Imagens de anônimos podem ser publicadas na internet, e no Instagram, influencers em todos os campos também ficam celebres. Mesmo anônimos que consigam postar algum vídeo que “viralize” ficam conhecidos. O limite entre o publico e o domestico, entre a imagem cultuada e a banal ou anônima desaparecem na internet, e elas vivem lado a lado. Frequentemente repartem momentos cada vez mais curtos da atenção de alguém.


   Antes do cinema, havia livros e estes, por mais descrições que tivessem, obrigavam o leitor a imaginar, a construir pra si próprio a forma dos personagens que lia, do seu mundo, etc. Hoje, há quem diga que a literatura acabou. Aliás, Huxley mesmo expressou essa visão, num artigo em que fala que Hollywood transformou a literatura em diversão havendo, a indústria cinematográfica, comprado as maiores editoras nos Estados Unidos.

   Antes do chat GPT, a inteligência artificial na internet já tinha assaltado o espírito humano, a ética (na anonimidade do que se publica e portanto irresponsabilidade) a criatividade, e o critério de verdade factual.


   No tempo de Proust, quando a invenção da fotografia era relativamente nova, uma foto representava algo tão íntimo e poderoso que para se ter alguma de alguém, havia que se pedir a permissão dessa pessoa. Quanto ao telefone, que encantou muitos, a princípio foi dispensado por outros, como o próprio Proust, que chegou a tê-lo em sua casa e a se desfazer dele por considerá-lo intrusivo. O pintor Edgar Degas, quando ouviu de um amigo que havia uma nova invenção que tocava uma campainha a qual atendida transmitia a voz de alguém, comentou, horrorizado: “Toca uma campainha e eu tenho que ir atendê-la como se fosse um empregado?”


   Hoje nem mais se precisa atender campainhas para que o celular governe nossa vida. Quanto ao tipo de adoração religiosa que despertavam os Beatles, a adoração do humano, Proust também chama atenção para o fato de que quando nos apaixonamos, estamos projetando divindades na pessoa que desperta nossa paixão. De acordo com ele, isso responde à nossa necessidade de povoar o nosso mundo com deuses. Reconhecendo o valor e papel da sua imaginação, ele reconhecia que facilmente se apaixonava por moças que via de passagem, por exemplo, dentro de uma carruagem, porque os detalhes de sua aparência ou seu rosto tinham que ficar por conta da imaginação dele.  


   Abençoados foram os Beatles ao satisfazer a necessidade de adoração ao humano pelo mundo afora. Onde se refugia agora a contemplação e o divino?


   Na verdade, a tecnologia sempre foi faca de dois gumes. Toda nova invenção é ambivalente, trazendo ganhos e prejuízos. Entretanto, me parece que o traço comum entre todas é o seu assalto `a imaginação, na constante abstração que fazem do tempo e do espaço, tornando o longe perto, barateando o inacessível, e promovendo a gratificação imediata.


   Era uma vez os Beatles e seus dias dourados. Agora é vez da multidão, sua voracidade profana, e a destruição do tempo.

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