Quando Melhor Entendi Woody Allen
Nesta época de incansável progresso digital e aumento da tecnocracia, parece que cada dia que passa os que são maiores de cinquenta se sentem mais incapazes. Viemos de outra era, mas diante do bombardeio tecnológico atual, alternativas espirituais e visões xamânicas se tornam mais populares do que nunca.
Não existe nada mais intenso do que um ritual de ayahuasca, essa relação de amor entre o individuo e o cosmos, quando o macro e o micro se tornam igualmente importantes e reconciliados na extrema generosidade dessa medicina de plantas que nada discrimina e tudo redime, a começar pelas oposições entre extremos contrários.
Ayahuasca já me mostrou o diabo se tornando belo sem nada mudar na monstruosa aparência conforme apareceu, quando por sua própria vontade foi lançado da baixeza mais distante para a altura da divindade e redenção.
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Por causa de ayahuasca, tive a coragem de me lançar, com mais de sessenta anos, na coisa mais difícil da minha vida, depois que conheci o curandeiro mais inacreditável de todos. Ele se chama Rogerio, é peruano e veio parar aqui na minha casa com Ada, sua mulher holandesa, através de amigos em comum. Conduziram dois rituais de ayahuasca na sala, que é espaçosa e tem vista para o quintal cheio de beija flores. Ele é professor de música, e o casal é super profissional no canto. O encontro de suas vozes, a dele apaixonada e a dela angelical, parece vir do paraíso.
A cerimônia ganha o rigor natural da própria perfeição e dispensa a necessidade de autoritarismo e regras de comportamento para os participantes, tipo não infringir o espaço alheio, não conversar, não ter contacto físico com outros, sentar com a coluna reta (absurdo exagero a que Rogerio é indiferente). Todo mundo em geral vomita ou tem dor de barriga, ou ambos, mas isso é parte do processo e corresponde `a fase em que a medicina expande os nossos sentidos e nossa consciência, ao mesmo tempo em que destrói o aparato intelectual com que percebemos o mundo. Quanto a ter reações sofridas por causa disso, ninguém pode controlar, mas tem gente que se aproveita dessas “rebordosas” pra chamar atenção. Por outro lado, ayahuasca é poderosíssimo/a e muitas vezes mostra `as pessoas coisas que as assusta ou que não querem ver, e quando isso acontece é melhor deixar rolar e não brigar com a medicina. Ela sabe o que deve trazer para cada um e quando, e se algumas vezes assusta com o que mostra, está dando chance a quem assustou de superar algum problema, algum medo, ou simplesmente se superar a si mesmo.
Na minha experiência, sempre me pareceu que o medo é intrinsicamente ligado ao julgamento, a uma imediata conceptualização de qualidade diante do que se tem medo, tipo “isso é horrível”. Sem querer, a gente afirma o medo que sente através desses julgamentos rejeitadores e gera um círculo vicioso de mais medo e mais escuridão. Mas quando consegui encarar fosse o que fosse sem essa rejeição e desejei as bençãos de Deus sobre o que via de assustador, a visão se metamorfoseou numa imagem de luz. Isso vai de encontro ao que disse Jung sobre a sombra: se a rejeitamos, ela se torna mais forte contra nós, mas se a integramos, nós é que ficamos mais completos e portanto mais fortes. Por isso escrevi no meu livro a sair sobre ayahuasca, que a medicina nos diz, como nos disse Jesus, para oferecer o lado esquerdo do rosto. Ayahuasca é por excelência contra o julgamento e a retaliação.
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Voltando a Rogerio, nunca vi nenhum participante dos seus rituais ostentando o que sente ou dando shows de exibicionismo. Ao contrário, aqueles que não se sentem bem passam pelo processo naturalmente, e acudindo-os de imediato, Rogerio os liberta. Ele oferece o chá mais forte que já tomei, mas se garante. Os participantes percebem estar diante de um nível mais alto não só de xamanismo como de música, por isso ficam respeitosos e humildes. As músicas de Rogerio misturam espanhol, quéchua e outros idiomas nativos, numa combinação magica e poderosa. Li há pouco num ótimo livro sobre ayahuasca (O espírito da floresta- Ronald Rivera) que as curas xamânicas tem tudo a ver com o que canta o curandeiro sem que se precise entender o que ele diz. Mesmo assim, eu gostaria de aprender Quéchua, de onde, aliás, vem a palavra ayahuasca: Aya (alma) huasca (cipó). “Cipó da alma” se reverte ao fato de que ayahuasca tem acesso ao outro mundo e pode nos trazer muitas visões de espíritos. Espíritos que conhecemos e outros que nos são desconhecidos.
Uma coisa que me impressionou e que nunca havia visto da parte de outros curandeiros além de Rogerio foram os momentos em que ele falou com as plantas durante a cerimonia, mais notavelmente com ayahuasca. Tive a nítida sensação de que ele entrava numa dimensão diferente. O que a gente sente na ressonância do que ele diz com a nossa alma, sim, alma mesmo, enriquece nossa audição para mil tons e reverberações que se estendem no nosso corpo, como que sincronizando-o com outro universo. Sente-se o espírito das plantas se comunicando com Rogerio. Ouvindo-o. As músicas que ele e sua mulher cantam são na maioria odes de paixão por ayahuasca, e durante a cerimonia, o casal também faz serenatas aos participantes. Param diante de alguns de nós, cantando e tocando os inúmeros instrumentos que trazem consigo.
Há mais de doze anos participo de cerimonias de ayahuasca, mas nunca tinha visto nada que se aproximasse do respeito, paixão, devoção, e ritualismo que Rogerio e sua mulher dedicam `a medicina sagrada da floresta (do cosmos, ou da Criação, eu diria). A primeira vez em que fiz parte de uma cerimonia deles, pensei que foi bom ter vivido para finalmente ver ayahuasca devidamente reverenciada, e achei que passaria meus dias em torno das próximas vezes que o casal viesse aqui. O que Rogerio transmitiu ao falar com o espírito das plantas me assombrou, e quando o cara que organiza as cerimonias para o casal tentou convencer quem pudesse a ir pro meio da floresta amazônica no Peru pra passar dez dias fazendo uma dieta em torno de uma planta (bobinsana) que aumenta a capacidade visionaria e, através de informações que os curandeiros recebem de ayahuasca, se associa a esta, achei que não podia deixar passar a oportunidade de uma experiencia mais profunda do espírito das plantas.
Ficamos aqueles dez dias no meio de uma parte muito densa da floresta, e cada pessoa tinha o seu “tambo” individual, uma espécie de barraca com teto, mas sem parede. O banheiro era uma fossa mais ou menos perto da barraca, cercado por um entremeado de palha que batia pela cintura das pessoas. A entrada era escancarada. Em toda aquela área, o emaranhado de arvores era tão denso que o sol raramente o penetrava. Via-se cobras, caracóis de mais de dois palmos, e insetos monumentais que poderiam intimidar o besouro de Kafka. Cada um de nós tinha que tomar um litro de chá de bobinsana por dia entre duas refeições pequenas e completamente despojadas de sal, açúcar, temperos e minerais.
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Durante aquele período, Rogerio conduziu cinco cerimonias de ayahuasca numa armação de madeira que chamava de maloca e que podia abrigar o grupo. Depois do primeiro ritual, quando eu ainda não sofria a fraqueza causada por uma dieta escassa e desprovida de sal, pensei que tinha encontrado a liberação de todas as máscaras da civilização, a nudez da verdade!
Porém, dali a três dias, achei que estava `a beira de um ataque do coração. A fraqueza que senti não comendo sal e tendo pressão muito baixa me tirou a energia suficiente para andar naquele lamaçal entre o intrincado de árvores, raízes gigantes, e cipós que nos batiam no meio da cara, tendo, ainda por cima, que me equilibrar numa vara, como todos ali deviam fazer sobre aquele solo, que castigado por chuvas constantes, afundava nossos pés ou nos fazia deslizar caminho abaixo. A partir do terceiro ritual de ayahuasca, todos nos arrastávamos, mesmo que os outros participantes fossem mais moços e volumosos do que eu.
Quando comecei a ter dor no lado esquerdo do peito e me vi quase completamente incapaz de me mover daqui prali, decidi avisar aos responsáveis. Já estávamos lá havia cinco dias, mas como sou muito visionaria, o chá de bobinsana por si próprio estava inundando a minha cabeça com imagens de santos nas cores luminosas de ayahuasca. Eu tinha levado livros dos místicos cristãos, achando que o lugar seria adequado para me aprofundar neles. Mas na agonia que senti fiquei incapaz de olhar o desenho do Cristo crucificado de São Joao da Cruz, impresso na capa de um dos livros que levei. Só em vê-lo de relance, eu pensava em toda a dor de Jesus pregado naquela cruz e sentia dores elétricas pelo corpo todo. Fiquei me achando uma cristã de araque por nem poder olhar para o crucifixo, e me considerei mais fraca do que jamais imaginei. Fui obrigada a encarar que pensamos com a carne ou através dela, e só mesmo sendo Jesus se consegue vencer a alteração com que o corpo, em estado crítico, molda nossa mente. Senti a humilhação e medo de entender na própria pele como “a carne é fraca”.
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Tive que dizer ao curandeiro que não queria prejudicar ninguém no caso de ter um ataque do coração, e ele afirmou que isso não aconteceria porque meu coração é cheio de amor. Mas a minha mente dolorida estava acabando comigo, e logo comecei a imaginar tudo que precisa de urgente socorro médico e que pode acometer qualquer um independentemente de idade. Minha imaginação virou páreo para a de Woody Allen: E se eu tivesse um ataque de asma por causa da humidade que mofava tudo por ali? E se o coração pifasse? E se tivesse apendicite ou alguma dessas alergias que são fatais?
Pensei no tempo que levaria arranjando uma canoa, navegando para algum barranco e continuando o caminho de volta num ônibus qualquer que passaria três horas viajando em estradas de terra esburacadas para chegar na cidade peruana de onde saímos. Rogerio então fechou a minha dieta no quinto dia, e `a mesma comida escassa acrescentaram sal para mim. A melhora foi notável, mas o enfraquecimento e a dificuldade de respirar continuaram. No oitavo dia, comecei a contar as horas, pensando não ter mais forças nem para sair de lá.
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Mas senti o espírito das plantas. Já tinha ouvido dizer que experiencias espirituais tem cheiro de rosas, e de vez em quando, um perfume de rosas e jasmim invadia a minha barraca. Antes de perguntar a Rogerio de onde vinha aquele perfume, me certifiquei de que não havia flores por ali. Ele respondeu casualmente que vinha dos espíritos da floresta. Fui a única que os sentiu, pois ninguém mais no grupo sabia do que eu estava falando quando indagava sobre aquele aroma.
Quando conseguimos voltar, a dificuldade de respirar, que eu já vinha sentindo em algum grau mesmo antes de ir, desapareceu no dia seguinte como se um nó se tivesse desfeito dentro de mim. Meu estomago, que é problemático, melhorou imediatamente, mesmo no estupor que tomou conta de mim durante todas as semanas em que a fragilidade do meu corpo me mostrou o mundo em cores ameaçantes.
Mas nunca esqueci a fragrância dos espíritos, e a razão pela qual me joguei numa empreitada de que achei que não sairia com vida foi mais do que justificada.
Agora me resta virar uma cristã que consegue olhar o crucifixo mesmo na fraqueza da própria carne para poder me envergonhar menos de mim mesma...
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