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Nala: o Silêncio do Amor



(Homenagem ao dia de São Roque)

 

Nala, por incrível que pareça, já nasceu de uma concepção heroica; ela é mistura do cachorro de colo shih tzu com rottweiler. Parece que a mãe era a rottweiler e estava dormindo, quando o pai, o shih tzu, resolveu botar pra quebrar, gerando essa cadela de olhos doces, pernas curtas, corpo volumoso, e inteligência transcendental.


Nala é o canino ideal. Nunca sujou a casa, nunca reclama, quando, por um motivo ou outro, temos que fechá-la por algum tempo no quarto, e sempre soube esperar que eu acordasse para lhe dar comida, fosse a hora que fosse.  Aliás, mesmo que ela adore comer como qualquer cachorro saudável, espera, antes de sair da cama que reparte comigo, que eu lhe dê o carinho matinal de todo dia, para só então seguir pra cozinha e esperar sua primeira refeição.


A excitação que demonstra `a volta de sua comida não se compara `a sua felicidade quando percebe que vou levá-la para passear. Pega sua coleira nos dentes e vai desfilando até a porta, numa mistura de orgulho e dignidade. Só isso já mostra que, para ela, antes da categórica autoridade dos instintos, está a liberdade do espírito; além da cegueira de um estômago vazio, ela enxerga o amor. Por isso, ao contrário dos que dizem que ela “vive pra comer”, eu digo que ela vive para amar.  


O mais incrível é que Nala tem capacidade de maravilhamento. As vezes me olha com uma expressão tão arrebatada de doçura, que o dizer, “seja quem seu cachorro pensa que você é”, ganha um sentido intenso e quase doloroso. O olhar de Nala é tão comovente e revelador, que não me sinto `a sua altura. Dei para ela uma bola de plástico transparente, iluminada por dentro com luzes coloridas que piscam sempre que bate no chão. Nossa, dizem que cachorro não vê cor! E quanto a se apaixonar?


Diante daquele objeto pisca-pisca de cores iluminadas, Nala vê uma joia, fica toda possessiva e morde a bola com delicadeza e expressão de êxtase, ainda conseguindo fazer pausas na sua avidez pra me olhar com gratidão. A bola colorida deve lhe causar o mesmo encantamento que sente uma menina diante de sua primeira boneca. Essa bola é um brinquedo pra criança, mas eu adivinhei como a minha cadela iria gostar dela e só tomo cuidado para que seus dentes não perfurem a superfície plástica desse “brinquedo”, e Nala coma a pilha das luzes. Enquanto não chega a fazer isso, é fascinante ver o transe em que ela fica!


Meu primeiro vínculo com Nala é inesquecível. Ela veio de meu filho, quando ele ainda morava em Boulder, e como estava indo passar uma semana no “Burning Man”,  deixou-a conosco. Recentemente mudados de Madison, meu marido já se encontrava numa viagem de negócios por dez ou doze dias, enquanto eu, minha filha Olívia, que era então adolescente, o cachorro que já tínhamos, Nala, e o passarinho, estávamos meio que acampados numa casa alugada, grande, decadente e assombrada. Olivia, no orgulho, intolerância e suposta

autossuficiência dos seus difíceis quinze anos, escolheu morar no ‘basement’ da casa e fazer sua área naquela grande extensão húmida, escura, e, segundo ela própria, preferida dos fantasmas.


De noite, levava Nala para dormir com ela. Naquela vez, eu tinha descido cautelosa para desejar boa-noite `aquela menina que até então fora minha amiga “de copo e de cruz”, e que agora olhava pra mim como se eu fosse uma criatura estranha. Mas eu ia só lhe dizer boa-noite.  

Nala estava deitada numa almofada no chão, e como fora deixada conosco na véspera daquele dia, parecia se sentir num limbo.


Por minha vez, eu não conhecia ninguém numa cidade nova, estava numa casa decrépita e me sentia mais anônima do que nunca. Esquecida pelo mundo.

A TV na parede acabava de mostrar uma das cenas finais do filme ‘Life of Py’, quando o menino, dentro do barquinho quase naufragando, grita para o tigre que vinha tentando salvar contra todas as circunstâncias no meio da tempestade em um oceano infinito, “We are dying, Py!”


Desejei boa-noite pra Olivia, que estava no seu computador, e ela revirou os olhos. Contendo os soluços ao ver o tigre esquálido e ao me sentir indesejada, olhei para Nala jogada ali na tal almofada como Py no banco do barco. Eu e ela deixadas pra trás e tendo deixado tudo pra trás.  Num impulso, me joguei sobre ela e a abracei,” Good-night, girl, I love you!”


Nala me olhou e seus olhos de açúcar transmitiram mais compreensão do que mil palavras poderiam transmitir. Ela me entendeu! Mais que isso, percebia que eu e ela vivíamos o mesmo momento!


Tenho certeza, pois a partir daí, me elegeu sua dona!


 

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