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NÚMEROS



A Tininha vinha, já havia algum tempo, sonhando com os mesmos números. Cética, estudante de Ciências Sociais e militante do movimento estudantil minoritário, aquele sem pendores místicos, cristais, cabalas, florais, cartas, astros ou gurus, no máximo se permitia uma roupinha artesanal peruana. Também não era um ET. E a cerveja dos finais de tarde, cada vez mais rara com o emagrecimento sistemático das bolsas de pesquisa, era sempre dividida com os amigos e com a discussão sobre os rumos da sociedade contemporânea.


Afinal, os pressupostos do socialismo listados por Marx e Engels não tinham tido a efetividade desejada e o comunismo, pensado como uma etapa, tinha durado muito e terminado mal, ao menos sob a ótica da imprensa toda, que a esta altura tinha se tornado não mais que um elemento da indústria cultural, pensada pela Escola de Frankfurt inicialmente, entre outras coisas, como um meio para tornar possível a transição para o socialismo. Idiossincrasias.


O sucesso do “Capitalismo de Estado” praticado pela China, que compra as commodities do mundo todo e inunda o mesmo mundo de produtos em grande parte desnecessários, alimentando uma máquina de consumo contínua e insustentável, parecia ser a pá de cal no sonho revolucionário ao qual os russos deram forma (antes de se converterem naquele país mafioso, cheio de oligarcas e com a recorrente mania de anexar países próximos contra a vontade deles).


A iminência da catástrofe climática, iniciada com a revolução industrial e agravada em tempo recorde com a civilização pós-1900 se deslocando e produzindo quase tudo a partir da queima de combustível fóssil e contaminação do ar por gases do efeito estufa, punha em cheque os modelos produtivos do mundo todo, especialmente se considerado o impacto geopolítico da indústria do petróleo, capaz de simultaneamente sustentar os inacreditáveis bibelôs opulentos dos emires do oriente médio e suas cidades-estado, arremedos de Nova Iorque de burca no sol quente e manter os venezuelanos com o cinto apertado, ambos dependentes de um produto só. O mesmo produto, aliás, que não trouxe essa riqueza toda para o litoral norte do Estado do Rio de Janeiro e que sustenta a sanguinária ditadura saudita, entre outros feitos.


Por volta da terceira cerveja, quase invariavelmente, algumas considerações sobre o crescimento da extrema direita mundo afora. Inclusive na Europa que deveria, em tese, ter aprendido com as duas guerras, especialmente a segunda. Pior mesmo só o recrudescimento da pior direita em Israel, pátria do povo que sofreu os piores atos do Reich. E risível, mas criminoso, esse mesmo crescimento, com requintes de absurdo, na multiétnica sociedade brasileira, onde uma meia dúzia de brancos com o sol quente na cabeça e – pior – uma meia dúzia de mestiços sem consciência genealógica, querem construir uma sociedade “racialmente pura”.


A reflexão sempre atingia também a África. Ou as diferentes Áfricas, assoladas quase de forma comum pelo colonialismo europeu desde muitos anos, com consequências variadas em cada região, com povos e culturas igualmente variadas. Desde o sanguinário genocídio negro ocorrido em simultâneo com o gigantesco sequestro de homens, mulheres e crianças feitos escravos nas Américas (e as perdas humanas eram tão monumentais que, dizem, viciaram os tubarões do Atlântico em carne humana), passando pela relação homicida do rei da Bélgica com os congoleses, pela estúpida e monstruosa guerra do Rife, aquele estado livre criado no norte do Marrocos e destruído por Espanha e França após ter dado um sacode bonito no exército espanhol. O horror do apartheid na África do Sul, que botou os holandeses diretamente com a mão no sangue alheio, eles que se orgulhavam de só “administrarem” a Companhia das Índias Ocidentais, que transportava pelo mundo as riquezas pilhadas pelos colonizadores diversos. Tinham já colonizado o Suriname e umas ilhas do Caribe, mas posavam de bonzinhos. E os alemães, que antes de se tornarem nazistas, e mesmo tendo dado importantes contribuições para a consolidação de um pensamento ocidental menos imbecil, tiveram tempo de massacrar povos originários na Namíbia.


A conversa fluía bem com os colegas. Gente da Geografia, da História, da Sociologia, da Filosofia. Não resolveriam os problemas do mundo, mas gostavam de refletir sobre eles. Tocando a bola, como fazem os times comandados pelo Pepe Guardiola e seus seguidores, em algum momento poderia se descobrir o caminho para a vitória.


Mas naquele momento, o que efetivamente mais incomodava a Tininha eram os números que vinham na cabeça dela o tempo todo. 01, 23, 65, 40. 01, 23, 65, 40. 01, 23, 65, 40. A cada noite, em sonhos sempre muito diferentes entre eles, os números voltavam. Pensou nos livros que tinha lido. Talvez houvesse alguma referência temporal ou simbólica contida na estranha lista. Pensou nas teses todas que tinha sido obrigada a ler no departamento em que era monitora. Pensou nos dados socioeconômicos que o professor de economia tinha deixado com ela, que só fez a disciplina como eletiva. Tinha dificuldade com números.


A manhã seguinte levou Tininha, acompanhada pelo colega da Filosofia com quem vinha já há algum tempo travando discussões mais íntimas, a um ponto de jogo do bicho. O garoto, ao contrário dela, acreditava em premonições, gnomos, fadas, numerologia e outras sobrenaturalidades, o que não raro dava em DR entre eles.


Não entendiam muito do riscado e jogaram no mais difícil. Duas milhares: 0123 e 6540.

Não ganharam nada, o mundo continua complicado e ficaram alguns reais mais pobres.

Os sonhos desapareceram como surgiram, inesperadamente. Os números, por via das dúvidas seguem anotados num papel.


Tininha segue cética, mas quem sabe, né? O tempo histórico não é necessariamente o nosso tempo.

E o namoro, parece, continua.


Rio de Janeiro, dezembro de 2022.


 

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