MEMÓRIAS OLFATIVAS

Descer o morrinho da Rua Lopes Trovão, ali perto do Hospital N.S. de Fátima, em Nova Iguaçu, significava muitas coisas para mim, quando era criança. Poderia ser o momento de atravessar a passarela (em frente ao antigo Giru´s Club, que depois transformou-se em Casa do Pagode, e agora, sustenta um templo de uma igreja evangélica) e jogar um fliperama no Center ou de comprar alguma coisa nas Sendas. Mas poderia, também, significar uma ida à Mesquita para as aulas de natação no Tênis Clube.

É impressionante como os perfumes daquele clube e daquele ambiente são nítidos na minha memória. Um odor de cloro misturado com a letargia magenta dos finais de tarde. Um aroma de esperança. Um aroma de primeiras paqueras. Minha avó também morava em Mesquita, e a casa dela tinha um cheiro de casa de avó que eu nunca senti em casa de outras avós. Será que cada casa de avó tem um cheiro de casa de avó diferente? Os quartos, a lavanda do banheiro, o vento que trazia o cheiro de sorvete de máquina com aqueles litros de Coca-Cola emborcados da padaria lá da esquina ̶ uma nota de sorriso escondido pelos cantos. De olhos fechados, eu saberia que estava na casa da minha avó Irani, uma baixinha que deu luz a 15 filhos e ainda criou mais um. Minha avó disseminou sua expressão forte pelos filhos que teve: todos se parecem com ela, mas nenhum têm o cheiro dela.

Creio que as casas têm cheiros próprios, mas que podem ser repetidos em algum outro lugar. A casa da minha madrinha tinha um cheiro muitíssimo característico: um agridoce algodoado, quase alfazema do campo. Uma predominância de repouso de cozinha pós-almoço, o silêncio absoluto das 14h30, as panelas descansando no fogão sob panos branquíssimos. Estive na casa de uma prima, faz poucos anos, e senti o mesmo cheiro do da casa da minha madrinha; comentei e, além dela ter ficado impressionada, percebi uma imediata ponte imaginária com o passado. Um aroma de preservação e de verdades (quase) esquecidas.

Há coisas que têm cheiros bacanas e interessantes: cheiro de perfume de namorada, de ex-namoradas, de banheiro de escola, de terra molhada, de livro velho, de alho no feijão, de sítio, de curral, de lenha queimando, de café, de pão quentinho, de alimentos defumados, de cachaça purinha, de hálitos selvagens, de mãe, de jasmim, de tardes frias, de mar, de bolinho de chuva, de cravo, de canela, de carne assada e de bolo de laranja. Ah... De barraca de pastel de feira, também.

Trabalhei com um homem excepcional chamado Aclóvio Alfaya. No começo, achava impossível me dar bem com alguém que tivesse um nome assim, mas nos demos. Foi um dos melhores profissionais com quem tive oportunidade de trabalhar: competente, rigoroso, detalhista, cultíssimo, organizado, de bom humor e contador de histórias da humanidade, pois sabia tudo sobre todas as guerras, todas as revoluções, todos os poetas, todos os personagens e todos os segredos que os livros nunca abordaram. Alfaya usava uma colônia esquisita, meio floral, quase doce, que dominava os corredores da empresa, como um aviso perfumado: estou aqui. Cheguei. Voltem ao trabalho. Parem de sacanagem. Soube, numa dessas coincidências da vida, que ele faleceu. O poeta manda um beijo e um abraço apertado, onde quer que ele esteja. Obrigado por tudo, eternamente.

Procure o seu cheiro, o seu aroma perdido, o seu elixir escondido na frisa.

Quem sabe na próxima brisa?

Música, Arte, Cultura

Estou escutando agora na Cedro Rosa a playlist Música de Pretos do Brasil

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Trilha sonora de grandes samba, repertório Cedro Rosa Digital.

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