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Ivan e o Cristo (Parte 3)



 

Os desenhos que fiz para a aula seguinte de Ivan não fizeram sucesso. Ele elogiou as ideias que tive ao fazê-los, mas disse que eu devia produzir muito mais e melhorar minha técnica através do treino de copiar fotografias com exatidão.


Mas eu sabia que se eu tentasse copiar apenas uma foto razoavelmente bem, medindo todas as suas formas e mínimos detalhes para torná-la o mais próxima possível da original, como ele queria, eu levaria a semana inteira fazendo isso de manhã à noite, e não teria tempo para dar forma às minhas ideias, que eu considerava expressões de dilemas existenciais que não deveriam ser negligenciados por causa da minha deficiência técnica nem adiados em prol de um longo treinamento. Eu era imatura não apenas para a arte, mas para o questionamento intelectual, e olhava para minhas ideias visualmente representadas como se fossem declarações verbais que pudessem ser reconhecidas pelo que "diziam". Se sua narrativa fosse clara, eu não conseguia ver por que a maneira como eu as tornava visíveis importava tanto. Se tivesse conseguido entender, em relação aos meus próprios desenhos, que a expressividade de uma obra de arte visual é uma comunhão de pensamento verbal e perceção sensorial, conteúdo e forma, ou, na linguagem de Kant, do inteligível com o sensível, eu não esperaria receber mérito por representações pobres de ideias existenciais por mais elevadas que fossem.


Ivan percebeu que fiquei desanimada e comentou a minha influência no trabalho que viu depois do meu. "As pessoas já estão copiando você", ele me disse, apontando para as mãos de dedos longos em um desenho que examinava. Mas ver mãos como eu costumava desenhar na obra de outra pessoa desencadeou em mim uma série de perguntas erradas, e a facilidade com que outra pessoa reproduziu o que tinha sido meu me fez sentir roubada do que tinha significado para mim um certificado de talento de Ivan. Eu não conseguia perceber que mil mãos como as que eu desenhei poderiam ser feitas por outros e não significar nada em seu trabalho. Na verdade, Ivan pouco considerou os desenhos com as "cópias" das mãos que eu desenhei e passou para outras obras.


Havia uma distância intransponível entre um artista realizado e desarmado como ele e a adolescente ansiosa que eu era, cujo medo de fracassar tirava minha espontaneidade e se tornava uma necessidade cega de me agarrar a algo fixo como mãos de dedos longos, para assegurar meu valor como um documento definitivo. O estado de ansiedade em que vivia me fez incapaz de olhar para a arte como a descoberta constante que ela é, em vez da certeza da repetição. Desafiada pela cópia das ‘minhas’ mãos, determinei-me a superar a maneira como as transfigurei para a próxima aula, exagerando seu formato a um ponto em que os dedos se tornaram incrivelmente longos e desprovidos de estrutura, como pedaços de borracha.


“Você se tornou uma fórmula de você mesma!” Ivan reclamou ao vê-los. “Devia tentar cores para se distanciar do que está fazendo!”, ele decidiu com irritação. Mas as cores só me levaram a criar pinturas anêmicas dos mesmos desenhos adulterados e botar Ivan fora de si. Incapaz de preencher a distância entre sua orientação e meu entendimento, ele frequentemente ficava preso entre a inquietação e a raiva ao criticar o que eu lhe mostrava, mais frustrado talvez com o fracasso de sua mensagem do que com meus resultados. Fazia breves pausas entre seus pronunciamentos e, enquanto eu sofria, ele parecia lutar com a tentativa de conseguir melhores maneiras de explicação que lhe escapavam.


     Aqueles dias foram terríveis. Bebendo cada vez mais álcool para enfrentar Ivan, eu voltava para casa enjoada, deprimida e com dor de cabeça. Papai, que não via nada de errado nos meus últimos desenhos, tentava me convencer de que Ivan não estava julgando direito, e por mais tentador que fosse acreditar, eu sabia que não era o caso. Mamãe, que também era incapaz de ver qualquer problema naqueles desenhos, continuava pensando que era hora de eu fazer uma exposição e me afirmar, não importa quantas vezes eu lhe dissesse que Ivan sabia do que estava falando.


Ela declarou que copiar fotos, como ele queria que eu fizesse, era loucura "Eu sempre fui contra copiar fotos", ela dizia, "e chegar a fazer cópias exatas delas é doentio! Só alguém que não vive realmente pode ser tão fanático!", ela decidiu, seu argumento ressoando com minha necessidade de procurar romance e justificando o tempo que eu costumava gastar falando com amigos no telefone ou socializando com eles por causa disso.


Se eu treinasse do jeito que Ivan queria, não conseguiria fazer, pensar ou esperar nada mais dos meus dias. Por outro lado, eu estava longe de saber que o que eu estava buscando com meus esforços sociais não seria encontrado por meio deles. A troca social me deixava vazia, e sem as grandes quantidades de álcool que eu estava bebendo, os jovens que eu procurava não teriam interesse para mim. Eu tinha abandonado a escola porque me era hipócrita frequentá-la sem interesse, e o que eu devia a mim mesma não era para ser resolvido por meio da chamada vida "normal". A anorexia mostrou isso na minha ânsia de eliminar mais e mais da minha carne, não importa quão magra eu ficasse ou quão ciente eu estivesse disso.


Vendo que Ivan me deixava na pior, e preocupada com o abuso de álcool que nenhum remédio estava me fazendo parar, ela decidiu convidá-lo para jantar conosco depois de uma de suas sessões, para que ele pudesse dar a ela a chance de entender melhor minha situação. Naquela ocasião, chamamos alguns conhecidos em comum e comemos na sala de jantar maior da casa de vovó, com ela na cabeceira da mesa servindo Ivan regiamente, de quem ela prontamente gostou por intuição — seu único modo de avaliar as pessoas. Ele estava à sua direita, papai e mamae `a esquerda, eu ao lado deles, Eric e os outros convidados ao lado de Ivan. O respeito que eu tinha por aquele homem atípico, meio que “savant” e também conhecido por sua clarividência, tornava difícil para mim até mesmo olhar para ele do outro lado da mesa, mas ainda assim, esperando contra todas as probabilidades que algo pudesse mudar a meu favor por causa de seu consentimento em estar em minha casa. Porém, a aprovação que eu já tivera dele me parecia tão remota, improvável e ideal quanto um milagre.


Não faltava assunto artístico entre Ivan e meus pais, mas mamãe não deixava passar a oportunidade de descobrir qual era meu status real com ele e pressionar sua própria visão da minha situação. Quando lhe perguntou como eu estava indo, deu o golpe de misericórdia antes que ele pudesse responder qualquer coisa: "Você não acha que ela devia fazer uma exposição?"

"Ela tem que trabalhar muito na sua arte; tem que se sentir profissional!", ele respondeu.

Tava na cara que ele queria dizer que eu não estava pronta para expor, mas distorcendo sua mensagem, mamãe insistiu, enquanto eu quis desaparecer no meu assento: “Exatamente! Ela precisa exibir seu trabalho como uma profissional!”


 Se por um lado eu sabia que Ivan tinha motivos reais de insatisfação comigo, por outro, eu me sentia incapaz de sequer considerar fazer o treinamento que ele recomendava. Fora minha luta para descobrir o tamanho das formas em relação ao espaço em que deveriam ser colocadas, eu também era desajeitada ao medir qualquer coisa, muito menos transpor seu tamanho e perspectiva em uma foto para um pedaço de papel. Pra mim, não tinha nada pior na escola do que copiar mapas, desenhar geometria ou trabalhar com gráficos de física.


Depois da sobremesa, mamãe chamou Ivan para seu estúdio no topo de sua garagem, o qual ela considerava um ateliê parisiense, cujo exterior era coberto por hera espessa em volta de duas pequenas janelas em forma de trevo. Dentro, havia alguns bancos, um cavalete antigo para a pintura a óleo que ela fazia, pequenos armários de um lado e um sofá do outro, abaixo de de prateleiras abarrotadas de livros, material de arte e esculturas. Em princípio, ela queria mostrar a Ivan uma pilha de desenhos que guardou de Eric e eu da época em que nos levava ao cinema, mas também poderia ter tentado dar a ele a chance de ver suas pinturas, que estavam encostadas nas paredes. Eu os segui, nervosa e insegura. Seria ainda capaz de aprovar o espaço de trabalho "francês" de mamãe diante do significado da presença de Ivan?


Assim que entramos, ele notou uma escultura abstrata de peças de metal soldadas em uma das prateleiras: "Isso é lindo!", falou, parando um momento diante da escultura. “Também acho; foi meu marido que fez quando estávamos na Europa, e ela figurou numa exposição coletiva em Paris com obras de Henry Moore e outros gigantes”, mamãe explicou.


Como sempre, Ivan mostrou um olhar infalível. Não disse nada sobre as pinturas de mamãe e isso me constrangeu. Coloquei-me atrás dos bancos em que ele e ela se sentaram lado a lado, depois que ela pegou os desenhos que queria lhe mostrar. O que ele pensaria deles? E da admiração de mamãe por eles? Eu sabia que Ivan não só apreciava arte infantil, mas também a de algumas pessoas loucas, tendo até transformado um cara psicótico num artista de sucesso.


No que concernia à arte, Ivan não via limites entre sanidade e loucura, doença e saúde, oportunidade e adversidade. Quando algum de seus aprendizes lhe dava a desculpa de não ter tido tempo para produzir tanto quanto esperava, ele dizia que não se tem tempo, se "faz tempo ", e sabíamos que estava certo. Certa vez, nos disse que apenas a morte e o amor poderiam impedir um artista de criar. "Quando alguém se apaixona", ele disse, com um sorriso caloroso e distante de uma memória que deveria valorizar, "não faz nada!", sua expressão de permissividade inspirando tanto quanto a autoridade que ele tinha para ser implacável. Ivan lidava com absolutos, com o que é exclusivo, como a morte e a paixão. Era tão fácil concordar com ele e tão difícil satisfazê-lo!


Quando vi mamãe passando para ele aqueles desenhos antigos de infância, enquanto fazia pausas entre eles para uma apreciação que não vinha, senti-me cada vez mais sem graça. Mas ainda pude admirar a maneira como Eric era capaz de colocar cenas inteiras de batalhas e construções num pedaço de papel, muitas vezes vistas de cima. Não estava "colado" ao que queria desenhar como eu e podia enxergá-lo em relação à extensão de papel que tinha disponível para fazê-lo, enquanto eu só conseguia focar em uma figura ou rosto, que frequentemente extrapolava os limites do meu papel. Mas eu admirava o senso espacial de meu irmão, reconhecendo que não estava na minha natureza.


Os desenhos que fizemos quando crianças não quebraram a indiferença de Ivan. Mas de repente, ao chegar ao ultimo, que era uma aquarela, segurou-a em frente a seu rosto, e olhou para ela como se estivesse alcançando profundezas que nem mamãe, nem eu, nem ninguém alcançaria. Com um entusiasmo assombrado que parecia uma resposta a algo que só Deus poderia saber, ele perguntou quem tinha feito aquela pintura. Tratava-se de um rosto de Cristo com o cabelo interrompido pelos limites da folha de papel em que estava. "Isso foi feito por Eva. Acho que ela tinha uns dez anos", mamãe respondeu.


Um longo momento de silêncio passou enquanto os olhos de Ivan permaneceram fixos na minha pintura. Então ele disse, como se estivesse saindo de um transe e falando consigo mesmo: "Isso é tão poderoso!"


Eu e mamãe ficamos em silêncio durante os segundos em que os olhos de Ivan permaneceram fixos no meu trabalho, e eu senti ciúmes da criança que eu era quando o fiz. Antes que o encantamento se dissipasse, consegui dizer a ele para ficar com meu Cristo. Nunca soube realmente onde estava o poder que ele viu naquela obra, mas me lembrei do momento em que a terminei adicionando algumas gotas vermelhas de sangue escorrendo pelo lado direito do rosto de Cristo.


A aproximação da família não ajudou a resolver meu bloqueio com Ivan, e quando não pude mais suportar a substituição de sua admiração inicial pelo que eu fazia por uma frustração crônica e agressiva de sua parte, tive que me afastar. Mas ele parecia uma espinha na minha garganta durante os dois anos em que fiquei fora de suas sessões de arte. Mas tal distância do que havia se tornado para mim um ambiente estéril me deu coragem para tentar pintar a óleo, e pude usar grandes pinceladas para expressar meu sofrimento com mais espontaneidade e vigor.


Com a liberdade do desespero, derramei-o na tela e consegui reconhecer a superioridade daquele trabalho sobre os desenhos mais antigos que mostrei a Ivan. Achei que ele deveria ver aqueles óleos e planejei voltar para suas aulas, mas antes que isso acontecesse, fui a uma retrospectiva dele no Museu de Arte Moderna e, ao me aproximar para lhe dar parabéns, agi como se nenhuma distância tivesse ocorrido entre nós. Ele me agradeceu com uma frieza dolorosa e se virou para outras pessoas ao redor. Seu desdenho me encheu de um medo que não tinha fundamento real, e tentei acreditar que ele estava chateado porque não lhe dei nenhuma explicação antes de desaparecer.


Mas isso não era do seu feitio. Mais do que se sentir decepcionado comigo, ele sentiu que ele e eu decepcionamos algo muito maior do que nós dois e me tratou como uma página virada. Isso pareceu definitivo e, para sair do Museu, tive que fazer esforço para acreditar que ele me redimiria quando eu tivesse a chance de lhe mostrar meu novo trabalho, mesmo lutando contra a sensação assustadora de que isso nunca aconteceria.


Não mais do que uma semana depois, acordei com a certeza de que algo terrível tinha acontecido. Ao conseguir sair da cama, senti-me como um corpo sem alma, e antes de chegar ao banheiro no final do corredor, não consegui mais andar e tive que sentar no chão, esmagada por uma impressão de ter sido roubada da minha identidade e da familiaridade que eu tinha com as coisas ao meu redor. Tudo o que eu olhava parecia rejeitador e grotesco a ponto de me fazer cobrir o rosto com as mãos para evitar tudo o que via, e ainda estava no mesmo lugar quando fui chamada ao telefone. Uma das mulheres que assistia às aulas de Ivan estava na linha para me dizer que ele havia morrido meia hora antes. Na noite anterior, teve um derrame e foi enviado para uma clínica, mas não pôde ser salvo de um segundo ataque naquela manhã. “Mas ele ainda era jovem”, balbuciei, na tentativa inútil de desacreditar o que tinha ouvido pela consideração de que a idade de Ivan deveria permitir que ele vivesse mais.


“Ele tinha cinquenta anos, mas tinha uma malformação congênita no coração e os médicos nunca pensaram que ele chegaria aos quarenta!”


Diante do meu silencio, ela me deu informações sobre seu funeral. Nunca mais pude ouvir a Toccata de Bach, a música de sua missa memorial, e nunca pude entender, ou me permitir entender, o homem que eu sentia que estava sempre certo, o espírito que podia transmitir o absoluto onde vivia para mim e para os outros — a coisa mais preciosa neste mundo de finitude e deterioração.


Eu era muito jovem quando conheci Ivan e nunca imaginei que a chance de encontrar pessoas que, como ele, podem nos elevar acima da banalidade e da relatividade é muito rara ao longo da vida. Sua posição de auto sacrifício diante da arte e a maneira como a sacralizava pareciam responder a uma vontade suprema, que ele foi sábio o suficiente para deixar coincidir com a sua própria vontade. Desde então, ao longo dos meus estudos em filosofia e da paixão que me levou à ayahuasca, identifiquei a autenticidade sacrificante da busca artística à missão cristã, ambas sendo guiadas por uma vontade transcendente que coincide com sua singularidade.


Quanto à clarividência de Ivan, eu realmente fiz minha primeira exposição no Museu de Arte Moderna dentro do prazo que ele previu, com os óleos que eu esperava que visse. As figuras que pintei eram assexuadas, alongadas, e tinham seus corpos invadidos ou destruídos pelo ambiente ao redor delas em uma união mística e brutal. Para mim, elas expressavam o amor como morte e renascimento, destruição de limites e comunhão. Não conseguia entender por que as pessoas as achavam assustadoras ao invés de sublimes, nem conseguia entender por que o mais importante crítico de arte que havia no Brasil na época, ao apresentar minha exposição, viu ‘o mártir da expiação’ como o tema do meu trabalho.


        No entanto, a aniquilação dos limites físicos das minhas figuras pela atmosfera que as cercava, que eu imaginava ser um nirvana despersonalizante, ou ‘a Vontade do Pai’, respondia à minha busca pelo espírito; ao meu laço em criança com  o Sagrado Coração, longe do mundo no afastamento da igreja na escola, e até mesmo às minhas tentativas de traduzir a realidade para o animismo da animação Disney, em que não há limites irrevogáveis ​​entre coração e matéria, mundo interno e externo.


        Só posso ser grata à ayahuasca por ressuscitar, na primeira vez em que a bebi, com as cores luminosas de uma mensagem inesgotável, o Cristo que fiz que Ivan tanto amou.

(do meu livro a sair, “Ayahuasca Is”)


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