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INVENTÁRIO




Tinha resolvido inventariar a vida.


De uns tempos pra cá, não tinha claro se pela perda de amigos próximos ou se por algum tipo de desencanto não especificado, tinha passado a se preocupar com coisas que antes pareciam muito distantes, especialmente aquelas que, por natureza, traziam à tona a discussão sobre a finitude da existência. Enfim, tinha batido no Moisés o cagaço da morte! O medo de, como dizia o Nelson Cavaquinho, virar saudade. Ou pior, ser esquecido definitivamente, como acontece com aqueles cuja existência não tenha sido percebida por muita gente. Não tinha escrito livro nenhum. Nunca plantou uma árvore. Não tinha filhos, irmãos, nada. Os muitos amigos que tinha ombreavam com ele na idade. Vivia a iminência do apagamento eterno quando sua geração passasse toda para o outro lado. Isso, que nunca fora um problema antes, agora o afligia. A vida, sempre muito dinâmica, tinha oferecido infinitas possibilidades, o que ele inclusive aproveitou muito bem. Viajara muito, muitas vezes a trabalho, atividade sempre de natureza técnica, resolvendo problemas para os outros, o que lhe garantia uma existência confortável, mas notoriedade mínima, exceto entre aqueles para os quais prestava os serviços. As indicações eram boas e rentáveis, um boca a boca que rendeu contratos excelentes, mas relativamente secretos, dada a especificidade do trabalho. Atender a quatro ou cinco grandes grupos empresariais não era tarefa difícil e garantia longas e confortáveis férias em grande parte do ano. Esse ócio todo, visto da perspectiva atual, poderia ter sido ainda melhor aproveitado. "Talvez assim deixasse algum legado…", pensou.


Agora, com o melhor da existência tendo ficado aparentemente no passado, se ressentia do mau uso do tempo, quando ele era farto e generoso, quase sem limites.

Ainda gozava de boa saúde, salvo um ligeiro avolumar da próstata, um quase imperceptível aumento na glicose do sangue, uma leve perda de acuidade visual ainda não definitivamente diagnosticada, um incremento no ácido úrico, a hérnia de disco sinalizando a intervalos regulares e, claro, a pressão que teimava em não baixar de 15:10.


A seu favor o fato de nenhum dos amigos recentemente perdidos ter sido vítima dessas enfermidades. TInha os melhores médicos, alimentação equilibrada, exercícios físicos regulares e o que mais fosse preciso. Se não era milionário, também não podia reclamar dos mesmos males que afligem aos pobres e à classe média assalariada.


Mas morrer era o medo que o movia ultimamente. Nascido em 1950, resolveu passar a vida a limpo a intervalos de dez anos. Queria tentar descobrir onde tinha errado. Os aniversários redondos poderiam indicar alguma coisa. Se fosse por eventos, talvez comprometesse a qualidade da amostragem, focando provavelmente nas festas. As derrotas tinha aprendido a esquecer. A escolha de datas poderia trazer à memória eventos antes esquecidos e que poderiam dar pistas.


Aos dez anos, em 1960, lembra da euforia do pai com a inauguração de Brasília. A família, de classe média baixa, moradora do subúrbio do Rio de Janeiro, via como uma entrada na modernidade a construção da Novacap no planalto central, vibrava com Juscelino e até sonhava em ir morar no interior.


Aos 20, ditadura militar, vigência do AI-5, ouvia Chico Buarque sem parar e torcia loucamente pela seleção brasileira, mesmo tendo consciência de que ela vendia, quase inadvertidamente, um Brasil inexistente, sufocado pelos generais. Em seu curso na universidade, viu que diversos professores desapareceram repentinamente no decorrer daquele ano letivo. Alguns alunos também. Não era um militante aguerrido, apesar de entender o momento e de até ter abrigado, por algumas semanas, dois colegas em casa, sob protesto dos pais, atendendo ao pedido de um professor amigo que logo desapareceu também. Mas de modo geral preferia a música. Além de Chico, tinha Caetano, Gil e Milton, que também eram parte de sua fixação. Vivia atrás de LP's novos ou ouvindo rádio. Chegou a ser parado pela polícia, mas nada grave. Era um estudante, mas era convencional.


Aos 30, em 1980, celebrava a anistia, ocorrida pouco antes. Lamentava não ter se engajado mais, mas era o momento. Custara a entender o que de fato acontecia nos anos de chumbo. Iniciava na nova década uma carreira vitoriosa em ciência da computação, então conhecida como “processamento de dados”.


Aos 40, viu pessoalmente a seleção do Lazzaroni não corresponder às expectativas na Copa da Itália. Já era bem sucedido profissionalmente, o que lhe possibilitava certos confortos não acessíveis a todos. Mas o Brasil de Collor era um horror. Nem perdera no confisco, porque seus recursos estavam fora. Tinha vivido um tempo nos Estados Unidos e mantivera lá as economias. Vivia agora na Zona Sul do Rio, bebia nos melhores bares, comia nos melhores restaurantes, viajava de executiva.


Aos 50 passou a ir ao médico regularmente. Já ia ao médico antes, mas não com a frequência devida. Tinha médicos amigos nos clubes e restaurantes que frequentava, consultas informais garantidas. O ano 2000 trazia boas recordações. Ganhou dinheiro como nunca, com a iminência do bug do milênio, uma das maiores fakenews de todos os tempos.


Em 2010 completou 60 anos ainda sob a anacrônica euforia econômica de um governo de esquerda no Brasil. Viveu pra ver isso. E ganhou mais dinheiro. Gastou dinheiro à toa indo à Africa do Sul ver o Brasil do Dunga perder feio, mas não havia muitas outras razões pra reclamar.

Os 70 vieram sob Bolsonaro e pandemia. Se sentia mal naquele Brasil recentemente saído do armário do fascismo e desconfortável no exterior desde a eleição, em fins de 2018. As pessoas olhavam enviesado, com desconfiança. Voltou para o Brasil, da última ida a Londres, quando a pandemia já fazia estragos por lá. Não tinha mais a agilidade de tempos passados e o cerebro, ainda são, parecia querer sinalizar avarias próximas. 2020 foi um ano de muitas perdas.


A Covid levou gente querida e assustou horrivelmente quem ficou por aqui. O medo foi um companheiro constante, mas levou ao cuidado extremo e à vitória: não se contaminou! Mais tarde vieram as vacinas e agora já se leva uma vida praticamente normal. Houve momentos em que se imaginou que essa normalidade jamais voltaria a ser possível. Mas essa mesma normalidade não parecia ter chegado para ele. O conjunto das pequenas enfermidades formava, a partir de cada singela contribuição, uma espécie de monstro.


- Luzia! Corre aqui! O meu LP do Chico Buarque novo sumiu! Eu quero ouvir Construção!! Eu preciso ouvir Construção!!

- Tô indo! Um momento!


A cuidadora, na cozinha do apartamento de Copacabana, comenta com a copeira:


- Já vou levar a fralda. Esse general quando tem esses pesadelos dele com o Chico Buarque, sempre se mija todo. Isso quando não faz pior!! Dia desses gritou “Abaixo a ditadura” e “Diretas já!!” e acordou todo cagado. E ainda me faz raiva porque meu nome é Margareth e ele só me chama de Luzia!


- Ninguém visita ele, né?


- Menina! Ouvi dizer que nunca teve um amigo. Era mal como o diabo. Eu só não quero que ele morra pra eu não perder esse emprego...


- Gente ruim devia terminar tudo assim, né?


- Eu só acho que tem dinheiro demais, mas aqui se faz, aqui se paga.


- Ô...


Rio de Janeiro, junho de 2023.


 

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