FAVELA
O tapa estalou com tudo no rosto dele, tendo coberto de uma vermelhidão arroxeada todo o lado direito da cara do Joca.
Já sabia, mas experimentava pela primeira vez, a seriedade da disciplina naquela área. A mão calejada do Bozó, o “frente” do morro do Sapo Verde, raramente fazia uma deferência dessas. Por muito menos, o indicador direito acionara antes, incontáveis vezes, o gatilho de uma “peça” semiautomática que ele trazia sempre junto ao corpo, com a efígie BZ gravada. Ou se utilizava de uma pistola sueca conquistada num conflito anterior e também mantida sempre à mão.
Se fizera estalar os cinco dedos na cara do Joca, era por um sinal de respeito à família do moleque, criado ali por pai e mãe zelosos, que nunca deixaram faltar nada e não desejavam que o peste seguisse o caminho da galera do mal, como era conhecida a turma que, sob o comando inflexível de Bozó, dominava o pedaço.
Não foram poucas as vezes que Bozó deslocara um ou mais de seus parças pra escoltar a subida de Joca voltando da escola. Em tempos de risco de domínio pela milícia, com o perigo rondando dia e noite, a polícia à espreita oficial ou extraoficialmente, a galera do Morro do Cachorro querendo tomar as bocas do Sapo Verde e outros riscos, voltar da escola também era um perigo. E Joca era o bem precioso da mais antiga família do morro.
O Joca Velho, seu avô, abriu as primeiras ruas, fez a igreja, a escola de samba, a creche, a associação, a pracinha, a quadra. Joca Filho, pai do Joca, foi expulso do morro ainda adolescente por uma acusação que depois se revelou injusta. Teria possuído, à força, a filha do Zé da Light, outro valoroso benfeitor da comunidade. A única certeza dizia respeito à pele do estuprador. Era branco. Numa comunidade com maioria de pretos, ele era suspeitíssimo. O caso foi resolvido bem depois e Joca Filho voltou depois de alguns anos em Minas, de onde trouxe o sotaque adquirido, a mulher barriguda de 8 meses e uma disposição para o trabalho que o tornaria mais um dos poucos orgulhos do lugar, grande herdeiro do legado de Joca Velho.
A Neuza do Joca, branca bonita de origem humilde como o marido, mineira de forno e fogão, fez fama rápido com o cheiro que saía daquela cozinha ao meio-dia e no fim da tarde. Joca depois da escola e Joca Filho (que era o pai...) depois do trabalho tinham sempre um rango muito bom pra matar a fome. Os dotes de Neuza não custaram a ser transformados em negócio, tendinha famosa que servia delícias caseiras aos componentes da Acadêmicos, a escola de samba e espaço único de cultura do morro.
A morte do Joca Velho, que caíra em desgosto quando Joca Filho saiu do morro e nunca mais se recuperara, nem com a volta do filho, foi muito sentida. Já havia alguns anos que o velho não saía de casa, não trabalhava, não cantava, não torcia para o Vasco. Mas sua história, construída ali, era contada como uma odisseia, de avós para filhos e netos.
E foi na inauguração do Largo do Joca Velho, na parte baixa do Morro, localização estrategicamente escolhida para possibilitar a visita de gente de fora da favela, que aconteceu o imprevisto.
A filha mais velha do Bozó, bandido perigoso, mas fiel aos antigos do morro, foi vista aos beijos com o Joca, garoto de seus 17 anos, boa pinta, estudioso, aquele lá do início.
A notícia chegou aos ouvidos do Bozó pela Zinha, filha de um dos homens de confiança da boca e, como grande parte das mocinhas do morro, interessada no Joca, garoto bom, sonho de mães e filhas.
Bozó ficou com os dedos coçando. A filhinha dele, Nilzinha, a mais de velha de uma pequena multidão de filhos que o traficante espalhara pelo morro nos últimos 16 anos em que reinava por lá, sendo beijada e abraçada por um moleque. Xingou todos os palavrões de que se lembrou na hora e mandou chamar o puto! Porra! Não é assim que a banda toca!
Levado a contragosto à frente do Bozó, Joca sentia uma mistura de orgulho e medo. Nilzinha, filha do Bozó, era linda e inteligente, adiantada na escola. E gostava muito de Joca. Já havia algum tempo que eles se encontravam sorrateiramente, fora ou dentro da favela, longe da vista do pai perigoso da menina. O orgulho vinha da reciprocidade e da conquista da beleza e inteligência da princesa do morro. O medo tinha razão óbvia.
Aqui cabe uma pausa pra explicação.
Um estranho fenômeno religioso crescera no Brasil no final do século XX, entrando com toda força no século XXI: a associação entre evangélicos fundamentalistas e grupos violentos organizados, notadamente milícias e traficantes de drogas. Historicamente, na sociedade brasileira, era dominante o sincretismo religioso. De acordo com a região, sempre com a predominância do catolicismo romano, floresciam centros de umbanda e candomblé. Os protestantes chegaram ainda no século XIX, formaram um grupo bastante representativo, menos afeito ao sincretismo, mas estabeleceram, também eles, um convívio pacífico com o que já havia.