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Foto do escritorLéo Viana

Eleição




Estamos no intervalo entre os dois turnos de uma eleição que nos definirá como povo, como nação e como país. Aprendi que eram coisas diferentes no tempo que a escola ensinava isso.

Eu já jurei pra mim mesmo que não escreveria nada mais antes do segundo turno. Mas quando chega perto dá aquela ansiedade que só sai pelos dedos.


O Brasil chegou a uma encruzilhada. Está definitivamente espremido entre um projeto de inclusão, que possibilite, como ocorria há poucos anos, que a maioria vislumbre perspectivas de futuro, que incluem educação profissional, acesso à universidade, agricultura menos contaminada e mais familiar, dinheiro até pra viajar e tirar férias, projetos de habitação popular, direitos trabalhistas e todas essas coisas fundamentais no estado democrático de direito, e um projeto autoritário, cujo grande projeto para as mulheres é o “direito à autodefesa”. As mulheres, que por este tal projeto devem ganhar menos, vão poder ter uma arma e se defender de assaltos e estupros. Índios e quilombolas poderão perder o direito às terras de seus antepassados, LGBT’s passam a ser tratados como seres humanos inferiores, juntamente com nordestinos e refugiados. A cultura e as universidades, elementos produtores, sistematizadores e mantenedores da nossa identidade, foram relegadas ao pior dos lugares e isso quer se manter.


Samba, na playlist da Spotify!


Nem em meus piores sonhos imaginei chegar a este ponto. Fui um mau aluno na universidade, mas dediquei grande parte da minha vida ao consumo de livros de história, geografia e ciências humanas (talvez tenha sido mau aluno porque gastei o tempo das necessárias matemática, física e química com a primeira e a segunda guerra mundiais, a colonização e descolonização da África, as ditaduras da América Latina e um tanto de literatura ficcional que ajuda a entender a cabeça do ser humano...). Por isso mesmo, a despeito de saber que a história tem por vezes o mau hábito de se repetir, não me imaginava dentro das páginas do que de pior a humanidade produziu. Não imaginava ver de perto o preconceito, a violência política, o fascismo, as ditaduras de volta. Ou ameaçando voltar, conscientemente, pela via da “democracia”. Tudo isso parecia confinado aos livros, mas como em “A Rosa Púrpura do Cairo”, filme do Woody Allen, a gente começou a ter que interagir com os personagens. E pior, os personagens, com a nossa autorização, passaram a dominar o nosso roteiro. E só os vilões!


A vida foi muito legal comigo. Ter saído de Meriti aos 18 anos pra estudar, me levou pelo Brasil afora e mais recentemente por algumas partes do mundo. Viajei o Brasil em ônibus e boleias de caminhões em tempos de coronelismo, secas, conquista do cerrado pela soja, grandes ocupações da primeira fase do MST. Vi o Brasil que precisava de governo, o Brasil pelo qual o “mercado” não se interessa. O Brasil dos excluídos.


Viajei pra fora do Brasil já na fase das vacas gordas, com o Brasil referência internacional no combate à fome, grande exportador de matéria prima ainda, mas também de aviões, carros, tecnologia de petróleo, cérebros bem formados ou em formação. E nos aeroportos da Europa encontrei com muitos brasileiros esperançosos que faziam suas primeiras viagens ao exterior. Também encontrei os filhos dos não escolarizados indo estudar no exterior, pra orgulho das famílias. E ainda havia os desesperançados, que sempre há, e largavam o Brasil “onde nada dá certo” pelo sonho de viver lá. Mas encontrei mais mesmo era gente que já vivia lá e estava entusiasmada com o novo momento que vivíamos aqui.


Vi muito europeu querendo vir viver aqui. E alguns vieram mesmo. Vi brasileiros voltando. E vi o fluxo intenso e significativo de pobres que iam passear ou estudar, rompendo um ciclo de miséria que se iniciou com o descobrimento e parecia terminar. Ledo engano.

Vieram erros de percurso, opções equivocadas, práticas semelhantes às dos senhores de antes e a derrocada com o golpe. Os golpes. Não há que isentar o PT e seus correligionários de alguma parcela de responsabilidade, mas houve golpe – golpes!! - e isso eu não discuto. Nem Dilma e nem Lula mereciam o que sofreram.


Assista ao Videoclipe musical e sociológico, com Juliana Wu,

do assentamento Terra Prometida, do MST, em Xerém, no Rio de Janeiro


De lá pra cá, voltamos à estaca zero e aumentamos a fome, voltamos a ter doenças antigas, já dadas como erradicadas, voltamos a exportar animais vivos, vendemos a Embraer, rompeu a barreira da Samarco, rompeu a barreira da Vale, batemos recordes de desmatamento, voltamos a matar índios e ambientalistas, deu-se a destruição do aparato fiscalizador de crimes ambientais. Hoje chegou a poliomielite de volta, enquanto reviso o texto pra mandar. Eu nem preciso falar de novo dos quase setecentos mil mortos pela pandemia. Assassinados por um governo hostil à ciência e mais afeito às crenças sem fundamento disseminadas pelas redes sociais.


Tiramos do armário o que há de pior em nós. Acabou definitivamente o mito do brasileiro cordial. Não exatamente no sentido do qual o Sergio Buarque falava e sobre o qual há inúmeras interpretações imprecisas, inclusive de gente bastante célebre e comprovadamente capaz em outras áreas. O conceito envolvia uma superfície de cordialidade e um interior de sensibilidades e afetos mal desenvolvidos, que buscavam no outro a sua completude. Afetos mal desenvolvidos é o que mais temos agora. Só afetos muito mal desenvolvidos nos levam ao que vivemos nos últimos quatro anos e que volta a nos ameaçar. Mas caíram também as máscaras de que seríamos um povo cordato. Na realidade há pouca alteridade e o brasileiro mostra a sua verdadeira face violenta, misógina, assustadora. O armário, como já disseram, tinha muito mais fascistas que homossexuais.


Como eu disse, a vida foi muito boa comigo. No pequeno núcleo familiar aqui de casa, estudamos os três em universidades federais. Viajei e viajo razoavelmente muito, li e leio bastante, toco cavaquinho em rodas de samba por aí e tenho amigos nos mais diversos estratos sociais, dos condomínios de luxo aos altos e baixos das favelas. Alguns precisam mais e outros menos de governo.


Um eventual – toc, toc, toc! Sai pra lá!!! - novo governo de exceção vai seguir beneficiando apenas uma pequena parte deles. Amo os meus amigos, os meus parentes, todos aqueles que me ajudaram a construir a vida que tenho. Vivo numa espécie de bolha de conforto, com salário em dia e carne no prato todo dia (ou não. Mas eu posso escolher), meus cafés, minhas cervejas, meus instrumentos. E me envergonho de ver quem também vive nessa bolha querendo eliminar a pobreza a tiros. A culpa da violência da sociedade é do aumento da desigualdade. Quando vamos aprender que não basta acordar cedo pra ter sucesso? É preciso ação do Estado, inclusão, oportunidades.


Mas a minha opção vai ser sempre pra beneficiar a maioria. Aqueles que ainda não alcançaram o padrão de vida que eu consegui alcançar.

Já falei que a esquerda cometeu erros, não preciso repetir. Alguns deles são reais e outros fabricados pela máquina de notícias falsas contrária, mas viraram fato na cabeça de muita gente.


De qualquer forma, prefiro uma esquerda com erros preocupada com todos e disposta a tirar a maioria do estado em que ela se encontra do que uma direita com acertos, cujo projeto beneficia só uma pequena parte. E que oferece as armas pra que essa pequena parte se defenda da maior parte, excluída.


Eu não quero fazer parte dessa página infeliz da nossa história.

O meu voto pode até ser secreto, mas dá pra saber qual é, né?



Rio de Janeiro, outubro de 2022


PS.: Texto recalibrado de 2018 para 2022.



 

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