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Foto do escritorPaulo Eduardo Ribeiro

Ela sabia que não voltaria





Sua única preocupação naquele sábado era com as enfermeiras que podiam a ver sem roupa.


“Que bobagem, a senhora foi auxiliar de enfermagem durante anos e cansou de ver gente sem roupa, por caso a senhora se importava com isso?”

Ainda segurando sua mão indaguei, afinal era a primeira vez desde que ela tinha sido internada que consegui vê-la acordada. As outras vezes foram momentos de profundo silêncio que vez ou outra era quebrado pelo barulho agudo do aparelho ao lado da sua cama.


Ela foi uma mulher forte, voltou a estudar quando eu e me irmão já éramos grandes, e assim correu atrás de seu sonho, na verdade um de seus sonhos, trabalhar na área da saúde, na enfermagem.

Religiosa... Religiosa até demais (pensei dezenas de vezes), mas como negar o fato de que me sentia confortado quando ela me dizia “estou rezando por todos, é o que posso fazer nesse momento”, e acredite, isso me fazia um bem danado.


Naquele sábado, porém as coisas estavam diferentes, ela não era aquela mulher forte que nos acostumamos a ver, mas também não era pra menos, meses sofrendo com os pulmões comprometidos, com dificuldade para respirar e com uma tosse que não a deixava dormir.

Suas companhias eram a bengala, necessária mesmo contra sua vontade para evitar que caísse novamente, afinal ela já havia contundido uma vértebra. Todas as vezes que nos falávamos ela me dizia da bendita vértebra “pinçando” o nervo e como aquilo a fazia sentir dor.


A outra companhia era a cachorrinha Brisa, acho que era do eu irmão, mas a aquela altura já não era mais possível afirmar isso com certeza, a impressão que eu tenho é que a Brisa resolveu escolher outra pessoa como seu humano.

Da cama do hospital, a imagem da santa colocada bem a sua frente lhe chamou atenção: “Que santa é aquela?”


Eu nunca fui religioso convicto como ela. Tenho minha fé, minhas crenças, rezo, peço, agradeço, mas daí saber o nome de uma santa seria pedir demais para um pecador que estava tentando não sofrer com a possibilidade dela não voltar para casa.

Foi um mutirão coordenado por ela, mesmo sem conseguir emitir uma palavra por causa do tempo que ficou entubada, mas descobrimos o nome da santa, e isso só foi possível graças a uma médica residente tão religiosa quanto ela, e também as ferramentas de pesquisa que hoje em dia conseguem qualquer resultado, basta fazer a pergunta certa.

Eu poderia ter lido a história da santa para ela, mas a visita havia terminado, um último aperto de mãos, um último beijo, não sem antes ela balbuciar que não deixaria os médicos a entubarem de novo.


Fica em paz, você vai para o quarto. Outro beijo, mais um aperto de mão, um sorriso de despedida...


Foi a última vez que a vi com vida.

No domingo foi a vez do meu irmão ir visita-la, que alegria receber sua ligação eufórica dizendo que ela tina ido para o quarto.

Os médicos estavam confiantes, e a equipe de enfermagem não cansava de reforçar o quanto ela era guerreira.


Poucos meses atrás havia desengasgado um bebê de uma vizinha, foi um corre corre, até que bateram na porta dela, aliás isso sempre acontecia.


Esse fato foi parar até nos jornais, “enfermeira aposentada salva bebê de morrer engasgado”. Quando mostrei a reportagem pra ela não houve reação de euforia ou algo assim, ela só me disse que fez o que tinha que ser feito, e o quanto tinha invocado força e discernimento para o Deus que sempre seguiu que sempre serviu.

Na segunda feira de manhã, dia 21 de dezembro, me lembro de estar na cozinha sentado, meu filho mais novo na sala, era meu dia de vê-la, eu estava em paz, pensativo, quando fui interrompido pelo vibrar do celular, era meu irmão.

Senti aquele frio na barriga, aquela sensação que não dá pra explicar, que a gente apenas sente e sabe o que está acontecendo.


“Alô.”

“Oi sou eu. Me ligaram do hospital, pediram pra eu vir pra cá e... a “véia” teve complicações a noite e não resistiu.”


Como assim? Ela tinha melhorado, tinha ido pro quarto... Me lembrei das vezes que ela nos falou sobre a melhora da morte. Desliguei e desabei num choro profundo e doído como nunca havia acontecido, um choro que dilacerava minha alma.


O resto são apenas fragmentos de lembranças daquele dia.

Ela viveu como queria, e morreu como desejou, pelo menos é assim que acredito, é assim que consigo seguir em frente, pensando o quanto ela deve estar feliz no paraíso que sempre acreditou e que sempre nos contou como seria.


“Um dia nos encontraremos lá outra vez.”

Como você tá? Perguntei.


“Ela sabia que não voltaria”, assim meu irmão me falou no primeiro abraço que trocamos sem nossa mãe, e eu... bom, eu tento não ser egoísta e achar que ela devia ter voltado para casa, ela não suportaria, o câncer estava avançado demais, os pulmões estavam comprometidos.


Prefiro lembrar dela sorrindo, feliz por ter conhecido seu primeiro bisneto, por ter nos colocado no caminho do bem, ter feito de nós homens honestos, menos religiosos do que ela gostaria, mas com a mesma crença nas coisas que ela também acreditava.


“Tudo bem fião?” era assim toda vez, e com certeza será assim um dia, quando a gente se encontrar de novo, e se ela disse que a gente vai se encontrar de novo um dia, quem sou eu pra não acreditar nela.


Dedicado à mulher que me deu a vida, minha mãe, Dona Terezinha (in memoriam).


Paulo Eduardo Ribeiro, do Canal Ponte Aérea, para CRIATIVOS!


 

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