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Foto do escritorLúcia Capanema Alvares

Distinções transculturais entre o preto e o branco: devemos esclarecê-las ou escurecê-las?



Começo essa discussão pelos países de língua inglesa, não só porque é a língua hegemônica no mundo ocidental, mas também porque é a língua em que melhor se identificam as definições que quero examinar; isto é, onde branco e preto são cores, em primeiro lugar, e a cor branca não é de forma alguma melhor que a cor preta; em segundo lugar, elas são aplicadas aos tons de pele das pessoas - Malcolm X já nos lembrava que as cores da pele humana são mais próximas do rosa e do marrom, mas ainda adotam a dicotomia branco/preto por lá; nesse caso particular, algumas pessoas dos EUA e britânicas podem até pensar no fundo de suas mentes que a cor branca é superior à cor preta. Essa distinção, no entanto, não é aceitável há muito tempo naqueles países, o que significa que não é aceitável classificar pessoas com base em sua cor.

Isso é claro e transparente ou pode ser um pouco confuso e obscuro? Seja qual for sua resposta, compartilhamos um entendimento comum de que coisas claras e transparentes são melhores do que confusas e obscuras. Por outro lado, ainda no Inglês, o céu quando está sem nuvens está “clear” (límpido), o dia quando está claro está "fair" (bom) e a noite é "dark" (escura); essas distinções renderam inúmeros poemas e canções sugerindo que os dias são mais fáceis de lidar do que as noites. Céus límpidos não devem ser temidos tanto quanto céus escuros. Quando esses termos são aplicados diretamente aos seres humanos, uma pessoa "clear" é uma pessoa direta, sem dúvidas, e uma pessoa "dark" possui uma personalidade ruim. Mas pode-se dizer que pessoas são de “fair skin” (pele boa ou clara) e/ou “dark skin” (pele escura), dando origem a uma área cinza (sic) que ainda parece aceitável. Não existem os nomes próprios White, Black, Clear, Fair ou Dark, além da personagem “Snow White”, a Branca de Neve do provavelmente racista Walt Disney...

Vamos dar uma olhada nas partes do mundo de língua francesa. A cor branca é “blanc/blanche” e a cor preta é “noir/noire” e “noir” é um termo associado a valores negativos. Diferentemente do inglês, a dicotomia pode ser aplicada a fenômenos naturais como dias, que podem ser “brancos” (“la journée est blanche”), e noites, que são “negras” (“la nuit est noire”) com todas suas qualidades e valores implícitos. A dicotomia é extensiva às pessoas, de modo que uma pessoa é classificada como “blanc/blanche” ou “noir/noire” revelando uma associação subjetiva, mas direta, de valores à cor da pele; Blanche é um nome próprio, enquanto Noir não. Isso quer dizer que, de alguma forma e implicitamente, os brancos podem ser considerados melhores do que os negros na língua francesa, e isso é aceitável por lá.

Em outra frente, quando alguém pergunta "C'est clair?" (“Está claro?”), a pergunta é paralela a “C'est bien entendu?” (“Está bem entendido?”). Em geral, o que é “clair” é transparente, bem explicado e certamente melhor do que o que é “opaque” e “ambigu” ou “mystérieux”. Quando aplicado a fenômenos naturais ou a pessoas, as conotações positivas ou negativas associadas a “clair” parecem estar relacionadas a circunstâncias e não a estados permanentes e seu valor pode variar: uma pessoa pode ser “clair/claire” ou “ambigu/ambigue” a respeito de um tema e não de outro e isso pode ser positivo ou negativo. “Clair” também significa claro, cristalino e brilhante, ao contrário de “foncé” (escuro), e não estão relacionados de nenhuma forma à cor da pele. Seria preciso dizer “peau claire” (pele clara) para fazer sentido, assim como faz sentido "peau noire" (pele preta), e aí temos uma nova dicotomia entre claro e preto, que aponta mais uma vez para a distinção valorativa; Claire é um nome próprio, enquanto Foncé e Noir não são, fazendo nascer mais uma zona cinzenta (sic) que ainda parece aceitável.

Uma rápida menção ao italiano é necessária para notar que, embora muito semelhante em conteúdo ao francês, há uma relação mais fraca entre as duas dicotomias: “bianco-nero” (branco-negro) raramente é relacionada a bom e/ou mau enquanto “chiaro-scuro” (claro-escuro) é mais baseada em valores (como em francês). Uma pessoa pode ser “bianca” ou “nera” e isso não implica em nada uma pessoa melhor ou pior, e não faz sentido chamá-la de “chiara/o” ou “scura/o” em relação à cor da pele — na verdade, quando “chiaro” é aplicado a pessoas significa evidente ou transparente; seu oposto é “oscuro” (e não “scuro”), que significa obscuro, incompreensível. No entanto, Bianca e Chiara figuram como nomes comuns, enquanto Nera e Scura não existem, o que ainda deixa margem para indagar sobre a discriminação baseada em linguagem e que pode ser aceitável naquela cultura.

Em relação ao mundo espanhol (mais que a Espanha, que agora se mostra um país muito racista a julgar pelo comportamento de suas torcidas esportivas), vale, na maior parte, o que acontece em francês e italiano. “Blanco” é o oposto de “negro” e, como cores (embora o branco seja realmente a soma de todas as cores e o preto seja a ausência de cores), elas podem ser aplicadas tanto a coisas quanto a pessoas e estão relacionadas a valores. Não esqueçamos que a cor preta e a raça negra têm um único nome em espanhol. “Claro” é o oposto de “oscuro” e também se aplica a assuntos/coisas e pessoas com conotações baseadas em valores. Ambas as dicotomias são socialmente aceitas com seus valores embutidos. Os nomes próprios Blanca e Clara são nomes muito utiizados. No entanto, quando você diz que alguém é “oscuro”, significa principalmente que a pessoa é obscura e, se você quiser dizer que a pessoa é escura no sentido que conhecemos, normalmente terá que dizer que a pessoa tem uma “piel oscura”; como nas outras línguas, certamente ela é menos valorizada do que quem tem a "piel clara".

Por último, mas não menos importante, o mundo lusófono – o nosso, com mais de 300 milhões de pessoas. À semelhança do espanhol, ambas as dicotomias podem ser encontradas e aplicadas a pessoas e coisas, mas esta língua parece ir mais longe no seu preconceito de cor: “Branco” é o oposto tanto de “preto” quanto de “negro”; “claro” é oposto tanto a “escuro” quanto a “obscuro”. O dia é “branco” e a noite é “negra” e se você está em apuros, a situação está “preta” para você. As dicotomias que existem em outras línguas ocidentais certamente não foram suficientes para diferenciar branco de negro, claro de obscuro na nossa cultura; os que falam português sentiram a necessidade de aprofundá-las, fazendo com que escuro e obscuro, tanto quanto preto e negro, sejam compreendidos e valorizados de forma pejorativa. Quando aplicados a pessoas, estes termos gozam de um grau de aceitação e compreensão social tão alto que você pode ouvir expressões como “negro preto sem-vergonha” e se referir a alguém como “escurinha” ou “escurinho” de uma maneira desvalorizadora e ficar quase sempre tudo bem. Não é razoável em qualquer outra língua chamar alguém na rua ‘ei, escurinha, venha aqui’ e isto ser compreendido e, pior ainda, aceito!

Diferenças históricas, culturais, religiosas e socioeconômicas podem explicar algumas dessas discrepâncias. Pode-se argumentar que os protestantes anglo-saxões foram para a América do Norte voluntariamente antes de se envolverem com a vergonha da escravidão e que, juntamente com a ascensão socioeconômica da sua comunidade negra, tornaram sua língua atual a menos prejudicial das cinco aqui mencionadas ou que os italianos foram os menos expostos à escravidão e ao compartilhamento de suas terras com os negros, deixando-os com menos julgamentos em relação a raça e cor da pele. Aliás, alguns podem argumentar que criminosos católicos povoaram o Brasil e que os portugueses estavam mais interessados em escravizar os africanos do que os espanhóis (que escravizaram e dizimaram mais os povos originários) para justificar o nosso paroxismo linguístico em relação ao racismo.

Apesar das várias influências do passado, os preconceitos raciais existem em maior ou menor extensão em muitas, senão nas principais, línguas ocidentais no presente e representam retratos vívidos de nossas sociedades. Visto que a língua pode ser considerada o mais importante veículo de transmissão cultural, descobrindo traços linguísticos do racismo, discutindo não apenas suas raízes, mas seus significados ocultos e/ou implícitos e, principalmente, suas influências atuais nas diversas etnias do mundo ocidental, devemos e podemos nos questionar sobre nosso uso da língua como forma de discriminação.

Na língua portuguesa, que argumentamos a mais preconceituosa deste quadro, proponho uma autorreflexão e uma autorregulação. Se você utiliza as expressões “dia de branco” ou “a coisa tá preta”, está na hora de repensar a valorização indevida das cores da paleta, antes que a gente pense que você está valorizando pessoas com base na cor. Não é difícil.

Já com relação ao outro par: no seu dia-a-dia, quantas vezes usa a palavra "claro" para dizer algo em relação à cor ou à luminosidade? "Gosto mais do verde claro" ou "ontem a esta hora o céu estava mais claro que hoje"? Provavelmente tantas vezes quantas diz gostar do azul escuro ou que a noite sem lua estava muito escura, certo? E quantas vezes usa a palavra "claro" e suas variações para qualificar algo como bom, correto, evidente, transparente? “É claro que vou a esse show maravilhoso” ou “João deve dizer claramente o que quer”. Na contramão, quantas vezes já escutou: "puxa, você me escureceu algo que eu não entendia" ou "escuro que vou aceitar um convite tão bom!" Implícito está que o claro, nesses casos, é bom em oposição ao que é escuro, ruim. Quando nossa língua aplica essa dicotomia às pessoas, o racismo se torna inescapável. O rapaz "escurinho", a moça "escurinha", sabem disso melhor que ninguém. E nós todos sabemos como é difícil o combate ao implícito, por mais torpe que ele seja.

É urgente reconhecer para enfim começar o esforço coletivo de desfazer este mal, que submete nossos sangues afrodescendentes a, no mínimo, desconforto e, para sermos honestos, a humilhação diária. Não é mais possível conviver com estas nuances mal disfarçadas do racismo.


Minimamente, é inaceitável que as pessoas sejam chamadas claras ou escuras para descrever seus tons de pele, quando sabemos que esses termos estão impregnados de valor. A única dicotomia válida aqui é claro versus obscuro. Então vamos deixar claro, cristalino, correto e evidente, com clareza, limpidez, objetividade e transparência, que claramente, obviamente, certamente, positivamente devemos esclarecer, evidenciar, explicitar, iluminar, passar a visão que o escuro, obscuro, torto, confuso, ambíguo e impreciso é utilizar-nos destas expressões para qualificar pessoas, quando elas se fazem presentes em todas as nossas etnias, independentemente de sermos mais brancos, amarelos vermelhos ou pretos.

Lucia Capanema Alvares, PhD Professora Associada Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal Fluminense

 

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