DENTRO DA HISTÓRIA
Pra começar, eu só queria dizer que acho, aqui com meus botões, que ainda não temos elementos suficientes pra avaliar se é bom ou ruim participar dessa grande aula de história interativa em que nos metemos, especialmente nestes últimos poucos anos que marcaram o início do século XXI.
Gosto muito de história e tive até a sorte de poder olhar de perto umas coisas. Não foi muito, mas já valeu. Me ajudou a desenvolver algumas teorias. A maioria provavelmente furada, mas ainda assim, tenho cá meu orgulho por ter formulado alguma coisa. Nas vezes em que tive oportunidade de viajar ao Velho Mundo, por exemplo, além da minha estupefação diante da infraestrutura (eu ficava mesmo boquiaberto diante daquela quantidade de linhas de metrô, trens, comunicações, sistemas de abastecimento, saneamento, enfim, essas coisas que nos fazem falta aqui), eu tinha uma impressão subjetiva, que derivava da cara de paisagem deles diante do novo.
Explico: no meu raciocínio elementar, uma sociedade antiga já viveu tanta coisa, já viu tanta mudança, tanta inovação, que não se impressiona com mais nada. Enquanto eu andava com cara de bobo vendo a organização das coisas, a Notre Dame me dizia que viu muita água passar naquele rio ali ao lado, desde 1163. Era eu olhando pro Tejo e a Torre de Belém falando pra mim que por pouco não viu o garoto Pedro Cabral saindo de viagem pra cá (a obra começou em 1514). Eu andando nas ruas de Munique, Colonia, Amsterdam ou Bruxelas e elas me lembrando que há algum tempo atrás estavam sob cavalarias, ocupações estrangeiras ou bombardeios em guerras variadas. E dá-lhe anfiteatro romano, ruínas galesas, aquedutos, caminhos de César e Napoleão.
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E dá-lhe invenção do cinema, do automóvel, da televisão, do avião até, com brasileiro na jogada. E dá-lhe universidade com quase mil anos.
Nossa história oficial é mais recente (os índios estavam aqui muito tempo antes...) , não menos importante, mas ainda em construção no que parece ser a fase inicial. Já rolou muito sangue, foram quase 400 anos de escravidão dos negros, foi o massacre dos índios, foi o cangaço, foi Antônio Conselheiro, foi Palmares, foi Getúlio, foi Juscelino, foi Jango, foi 64 e foi Lula! Falta um monte de coisas relevantes aí, é claro, não tem fidelidade cronológica, enfim, é um apanhado insuficiente e aleatório. E a falta de referências físicas agrava a nossa já historicamente combalida memória.
O que eu queria ressaltar, no entanto, é que a nossa história mais recente não nos deu elementos suficientes para fazer aquela cara blasé diante dos acontecimentos. Muito do que acontece é novidade mesmo! É fato inédito, sem antecedente documentado, sem referência bibliográfica.
Quando, a partir de 2003, além do maciço incentivo ao acesso ao ensino superior, com a criação de universidades e estabelecimento de convênios internacionais, envio de multidões de jovens estudantes – em grande parte pobres - a grande universidades estrangeiras, houve ainda aquela impressionante incorporação de brasileiros ao mundo do consumo, com a inesperada superlotação de aeroportos, explosão da revenda de automóveis, recordes na construção civil e, exemplo dos exemplos, multiplicação desenfreada na quantidade de churrascos em churrasqueiras de apartamentos e quintais Brasil afora (com picanha!!), estávamos diante de um fato de incontestável ineditismo!
Mesmo a pequena parte da população que já se considerava europeia esforçou-se para ficar indiferente, mas não conseguiu. Fez aquela cara de nojinho da aristocracia francesa diante dos assentos da classe econômica, comprou jipões pra oprimir os carros 1000, tentou fugir do Airbnb, migrou pra contas prime no banco, fez de tudo pra minimizar o contato, mas já estava feito. Era o fato histórico acontecendo e a gente dentro dele. E os bancos lucrando, os ricos ainda mais ricos, os pobres menos pobres. Geração de riqueza. Todo mundo feliz!
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Os acontecimentos posteriores, além de provar pra nós que o tempo histórico pode ser muito curto – fomos do luxo ao lixo em menos de uma década – são mais demonstrações da nossa diferença na percepção das coisas. Ao mesmo tempo em que, não sei ainda se por perplexidade ou amadurecimento, ficamos paralisados diante da sucessão de fatos, numa imperdoável indiferença da qual provavelmente seremos cobrados no futuro; o mundo inteiro, e especialmente a Europa, acostumada a tudo, se impressiona como nunca diante de fatos ocorridos aqui em pindorama.
Também não sei se é mérito ou demérito, mas conseguimos fazer o público europeu sair da letargia duas vezes seguidas: com a inclusão a partir de 2003 (eu os vi, com esses olhos que a terra há de comer, nos aplaudindo de pé!!!) e agora, com essa barbárie, que lembra os piores momentos da história milenar deles.
Ainda bem que, de máscara, a gente não consegue ver a cara de deboche.
Rio de Janeiro, março de 2021.
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