DE UM LADO PRO OUTRO...
O Samuca oscilava mais que ventilador com base bamba. Tinha transitado entre a direita e a esquerda um monte de vezes, inseguro que era quanto aos princípios que deveria seguir. Queria uma sociedade mais justa desde moleque. Nisso, marchava com a esquerda. E marchou mesmo. Chegou a defender a luta armada, já em tempos de paz. Sofria com as injustiças contra agricultores, lamentava profundamente a quantidade de gente que vai nas ruas, sem casa e sem destino. Mas no meio da adolescência, acometido da forte dose de egoísmo que em muitos casos contamina a turma naquela fase da vida, passou a admirar os mais ricos, entender que só o mérito podia levar a algum.
Numa fase pré-redes, amava os Ermírio de Moraes, os Diniz, os Sendas, os Paes Mendonça. E toda a teoria econômica que, mesmo sem dar resultado prático, era derramada com a sabedoria dos donos do poder, por Simonsens, Campos e Delfins. Durou alguns anos essa fase. Veio a universidade, e com ela um conjunto menos fácil de teorias e ciência. Foi preciso estudar muito pra entender que a sociedade tem classes, que não é justa e que mérito não resolve tudo. Voltou cabisbaixo à esquerda, tocou muito violão e conquistou a Maria, moça inteligente do interior, um doce de pessoa no ambiente inóspito da engenharia. Bons alunos, graduaram-se juntos e se empregaram juntos também. A pequena empresa de obras cresceu com eles.
Pegavam subempreitadas de empresas maiores, construtoras de grande porte que sempre terceirizaram uma parte do que faziam. Aos poucos, com o sucesso da empresa, o Samuca foi voltando a ser de direita. Não tinha perdido a base teórica construída aos trancos e barrancos nos tempos de militância de esquerda, mas as facilidades que o dinheiro dá fizeram voltar uma parte do egoísmo da adolescência. A Maria, que fora seduzida no passado pelo estudante clichê de esquerda com camiseta do Che, passou a sofrer quieta. Mantinha a militância num grupo feminista, na associação de bairro e na cooperativa de consumidores de produtos orgânicos. Vinha estranhando o Samuca e achou que as coisas tinham desandado de vez quando ele apareceu com as passagens pra Miami.
Trabalhavam muito e quase não havia tempo pra férias, mas a Maria sonhava com uma viagem pelo Brasil ou pela América Latina. Não fazia questão de ir aos Estados Unidos, exceção feita aos parques naturais, São Francisco, Nova Orleans e Nova Iorque. O restante não a animava e nem as preferidas eram prioridade. A justificativa do Samuca foi ainda pior. Disse que era pra lá que iam os ricos e que ela devia se preparar porque eles provavelmente em algum momento se mudariam em definitivo para a Flórida.
Ela não conseguiu demover o Samuca da viagem, mas não o acompanhou. Alegou projetos atrasados, deu força pra que ele fosse com algum amigo e acabou ficando tudo bem. Maria não cogitava terminar o casamento. Eram felizes a seu jeito. O caldo só desandou mesmo quando o Samuca passou a andar com gente esquisita, graças a um projeto público que já havia sido denunciado como superfaturado pelo Estado, sem que houvesse a contestação da provas apresentadas.
Maria defendeu a saida imediata da empresa do consórcio contratado, mas Samuca disse que a situação era contornável e que perderiam muito dinheiro. Não eram eles, afinal, os responsáveis pelo superfaturamento, efetivamente. O governador, além de reacionário e corrupto, parecia envolvido com grupos de milícia, o que fazia a Maria espumar de ódio, mas não afastava o Samuca dos projetos. Ao final, levaram o prejuízo, mas a competência da Maria na gestão de outros projetos rentáveis fez com que a empresa sobrevivesse. Ela, pensando em ter filhos ainda com o Samuca, fez força pra manter o amor, na esperança de recuperar o velho marido boa praça.
Mas vieram tempos bem mais sombrios. Após um leve aceno à esquerda no auge dos governos do início do século XXI, quando a redução das desigualdades fez com que ele revivesse tudo que que havia estudado, permitiu que também ganhasse muito dinheiro e até participasse de grandes ações de direitos humanos e ação social com apoio de seus amigos dos tempos da militância, o Samuca voltou a se perder pela direita, agora seduzido pela verve do então presidente da câmara dos deputados, famoso parlamentar belicoso que iniciou sua ascensão no tempo do caçador de marajás, como presidente de uma empresa de telefonia. Chegou a festejar a cassação, via golpe parlamentar, da presidente eleita.
Também falou em Deus, pátria e família, como os deputados daquela famigerada sessão. A Maria desistiu. Pediu inclusive pra sair da empresa, comprou um apartamento em outro bairro e deu fim ao casamento polarizado. O Samuca tentou reatar, fez juras de amor, mas a situação era irreversível pra ela.
Foi pela televisão que ela viu o ex-marido em motociatas e acampamentos no final de certo governo recente, que ela, obviamente, abomina. Também foi por lá que o viu atacando as vacinas e zombando de quem defendia medidas restritivas na pandemia. Maria, agoniada, tentou até conversar, mas ele tinha perdido a capacidade de entender.
A empresa faliu, prejudicada pelos maus contratos que o Samuca captou.
Pela tv, sempre ela, mas também pelas redes sociais, Maria o viu, de camisa amarela, na tentativa de golpe do 08 de janeiro. E o viu seguindo para a Papuda.
Um advogado ligou pra ela recentemente, convidando-a a depor como testemunha de defesa no processo.
Ela chegou a pensar, mas não foi.
Já tem um novo amor, que pensa como ela. Tem emprego, nunca deixou de ser uma grande engenheira. Especializou-se em estruturas, matéria em geral dominada por homens. O Pedro, recém ingresso em sua vida, é antropólogo. Maria, em sua leitura particular, acha que corre menos risco de uma guinada à direita.
Acabaram de voltar de Machu Picchu.
Ele foi convidado a dar uma conferência em Harvard. Vai falar sobre a polarização política no Brasil e a herança maldita da ditadura militar, resultado de anos de estudos aplicados. Ela até abriu uma exceção. Vai com ele.
O amor, nesse caso – e ainda bem - tem lado.
Rio de Janeiro, abril de 2024.
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