Chico faz literatura na entrega do Prêmio Camões
Na véspera das comemorações de 49 anos da Revolução dos Cravos, aconteceu em Portugal um fato, já amplamente divulgado e reverberado, que foi a entrega do Prêmio Camões a Chico Buarque de Holanda, quatro anos depois de Bolsonaro ter se negado a fazê-lo. Mas não ligo pra ser repetitivo.
O que as paredes do Palácio de Queluz absorveram e vão guardar para todo o sempre daquele histórico 24 de abril na charmosa Sintra, foi mais que pompa e circunstância, próprias do acontecimento. As paredes vão guardar os eternos pouco mais de 9 minutos de discurso do agraciado.
O menos cético dos céticos não há de ter visto nada de anormal no discurso. O início protocolar saudando os presidentes Marcelo Rebelo e Lula, as demais autoridades, seus pares, falar de suas origens e influências. A emoção. Clichês, nada mais, diria o cético. Não discuto. Mas não sou cético nas 24 horas do dia. Vi outras coisas. Chico é um gigante e certamente me convenceria que fez tudo muito consciente. Algo totalmente convencional para uma premiação literária. Mas repito, vi mais coisas naquela fala.
Naqueles nove minutos e alguns segundos Chico fez um resumo de sua existência como artista. Havia naquelas folhas as ferramentas habituais, música e prosa, carregadas das suas cores mais comuns: ironia, humor, sarcasmo, poesia, deboche, paixão, política. Texto multicor e redondinho. Vão alegar ser delírio de um fã. Pode ser. Afinal, delírio também é um tipo de filtro.
Chico abriu sua fala homenageando o pai, Sérgio Buarque de Holanda que o incentivou na literatura e nem se zangou quando ele se bandeou para a música. “Gostava de samba”. Lembrou que o pai, outro monumento nacional, se mandou da Universidade de São Paulo em solidariedade aos colegas cassados pela ditadura. Anos depois seria um dos fundadores do PT. E segue Chico na prosa boa e solta a saudar os presidentes, autoridades, políticas e culturais, e chega na mulher, Carol Proner. Uma risada nervosa antecipou a paródia do caso da gravata comprada para Lula pela primeira dama Janja, dias antes numa loja de luxo em Lisboa, por 160 Euros. O caso gerou polêmica nas Redes Sociais. A prosa irônica e debochada serviu como desagravo ao fato que não teria a menor importância fosse com qualquer outro presidente.
Mais à frente abordando sua ancestralidade e a ligação com terras lusitanas, Chico enfiou no discurso os versos de Paratodos: o meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano, arrancando aplausos e risos. Falou da herança étnica que inclui negros e indígenas e lá nas origens, judeus perseguidos da comunidade barcelense que escaparam, como cristãos-novos, da Inquisição. O que um dia poderia lhe render, brincou, a cidadania portuguesa como reparação história. Mais risos. Literatura. Sobre fatos reais. Chico gosta disso.
Para terminar, após citar influenciadores, parceiros de trabalho e gente que admira na língua portuguesa, como João Cabral de Melo Neto, Vinícius de Moraes, Raduan Nassar, Rubem Fonseca, Mia Couto, José Saramago, Chico fechou o discurso com chave de ouro. Duas chaves, na verdade: 1) Nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula (risos e aplausos); 2) Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo. Perfeito.
É isso meu caro Chico. E você lembrou que ainda existe o risco de pecado fascista no lado debaixo do Equador. Mas amanhã vai ser outro dia. Que assim seja. Parabéns!
Cultura
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