ALGUMA CONSCIÊNCIA

Gosto de conversar com pessoas negras assim como eu. A conversa pode começar por qualquer assunto trivial. O tempo: tá com cara de chuva, será que faz sol amanhã? Futebol: viu o jogo no sábado e essa seleção hein? Trabalho e lazer: descansou no fim de semana ou foi à praia?
Lá pelas tantas introduzo o tema, sempre falando de mim mesmo. "Estava um frio igualzinho a este e eu em São Paulo fazendo um curso pela gerência. Andei bem ali pelo centro. Tinha uma galera muito branca por lá. Não senti discriminação nenhuma por ser negro."
Pronto. É o suficiente. A pessoa se solta e começa a contar suas histórias. E sempre, sempre, aparece uma memória, uma vivência, de discriminação racial. Nós as temos e as escondemos no cotidiano em que fingimos ser iguais. Não somos. Não podemos ser.
Uma sociedade herdeira de um passado escravocrata, que nunca encarou seus fantasmas e tampouco fez algum esforço real para corrigir suas injustiças históricas, uma sociedade que jamais se olhou de verdade para, se não resolver, pelo menos expor seus conflitos, não consegue – e talvez não queira – alcançar a igualdade de direitos entre seus membros. Somos desiguais num nível absurdo de sacrifícios pessoais e prejuízo social. Uma nação esquizofrênica.
Gosto de conversar com negras e negros. Elas e eles me contam suas histórias de humilhação, superação e descobertas. E o incômodo aparece. Sempre aparece. Ter de parecer branco. Comportar-se como branco. Acreditar num Deus branco. Não se trata de nenhuma "volta às raízes". Estas pessoas não temos raizes; as raízes foram-nos arrancadas. Todas estamos ocupadas em produzir frutos. Preocupadas com os frutos. Porém há fatores, longevos e atuais, que nos impedem de frutificar plenamente. As pessoas negras falamos disto.
A discriminação racial no Brasil é em regra sutilmente violenta e violentamente sutil. Nem sempre afirma: é isto porque você é negro. Dificilmente assume: não quero uma negra na minha loja. Mas diz. E como diz. Com olhares, posturas, escolhas. Óbvio que também temos o racismo escancarado. E o que dizer do martírio dos jovens negros, assassinados todos os dias em todas as nossas periferias?
Gosto de conversar com pessoas negras assim como eu. Contam-me histórias. Às vezes mesmo histórias positivas: orgulho de terem sido aceitas num mundo branco ou quase branco. "Somos todos mestiços" – alguém me disse outro dia. Declarado ou sinuoso o racismo está presente. É o elevador de serviço de que fala a música do Jorge Aragão. E o "colocar-se no seu lugar". Qual o nosso lugar num país ensandecido pelo sonho de retorno a uma mítica Europa branca, que nunca houve aqui e sequer existe em grande parte do próprio território europeu?
Sou negro hoje. Nem sempre fui. Não me sabia. Acreditava no dito "Somos todos iguais". E somos, fundamentalmente, num mundo ideal... Utopia? Não aqui e agora. Não com este lastro histórico. Não com este tipo de abordagem das forças de segurança nas comunidades. Não com os risinhos abafados quando alguém se aproxima com as roupas rituais dos cultos Afro. Não com a depredação de terreiros. Também não com as representações pictóricas de Jesus, Cleópatra, Iemanjá e Machado de Assis, a lhes expurgar o fenótipo não branco para afirmar que fazem parte de um suposto processo civilizatório. Não enquanto o funk sofrer ondas de preconceito tal qual o samba em outras eras. Não enquanto uma elite branca, quatrocentona ou não, impor a sua pauta a um país de maioria negra.
Um certo professor negro, na faculdade particular em que consegui colar grau (depois de ter entrado e saído de duas públicas, por precisar trabalhar; a tal igualdade), disse-me assim: "Aí negão, tu sabe que a gente, que é da cor, tem que se esforçar mais, tá certo? Quero que se forme. Quero te ver de beca. Tá precisando de alguma coisa, tem emprego, tem como pagar até o final do curso?"
Respondi que sim, obrigado. Era funcionário público. Podia arcar com as mensalidades. Este professor foi o homenageado em nossa formatura, mesmo não fazendo mais parte do corpo docente.
Gosto de conversar com as pessoas negras. Com as brancas também. Ninguém deveria sofrer discriminação de nenhum tipo.
Jorge Cardozo
novembro de 2024
Mês da Consciência Negra
No cenário cultural e tecnológico atual, construir um polo de criação independente e de qualidade é uma missão inspiradora, especialmente quando comunidades culturais, artísticas, intelectuais e científicas se unem para transformar a dinâmica entre consumidores e produtores.
Escute a playlist Música Popular do Brasil, da Cedro Rosa.
Nesse campo, a ideia é que todos saiam de uma posição de consumidores passivos para se tornarem protagonistas ativos, gerando e expandindo novas vozes e narrativas. Esse movimento, ainda que desafiante, tem ganhado corpo por meio de iniciativas como as da Cedro Rosa Digital e seu sistema de certificação musical, além do portal CRIATIVOS!, que aposta no incentivo contínuo à produção local e global.
Imagine um espaço onde artistas, cientistas e pensadores possam não apenas compartilhar, mas também valorizar seus trabalhos em um ambiente que remunera corretamente suas criações. A Cedro Rosa Digital, fundada por Antonio Galante, é uma das pioneiras em trazer esse conceito para a realidade.
Com sua plataforma de certificação e distribuição, ela não só distribui obras musicais para um público diverso, como garante que os direitos autorais sejam preservados e que os criadores sejam compensados pelo uso de suas produções em projetos audiovisuais, comerciais e digitais.
Ao lado de parceiros institucionais como ASCAP, SACEM e ECAD, e em colaboração com entidades como a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e a EMBRAPII, a Cedro Rosa Digital desenvolve tecnologias de ponta, incluindo o sistema CERTIFICA SOM, para dar transparência e segurança à distribuição musical. Assim, a plataforma oferece um novo caminho para o artista, que passa a ser reconhecido não apenas no Brasil, mas também globalmente, fortalecendo o impacto do setor criativo na economia.
O portal CRIATIVOS!, por sua vez, vem atuando como um catalisador no fomento à diversidade cultural. Este site diário, que reúne escritores, cineastas, acadêmicos e criadores de todas as áreas, tem criado um espaço dinâmico onde o pensamento crítico e a inovação se encontram.
A cada postagem, o portal não apenas divulga novas obras, mas também cria um ambiente de troca de ideias que incentiva a criação colaborativa. Um exemplo recente é a série de discussões sobre os benefícios do blockchain para o mercado cultural independente, tema amplamente explorado pelo portal. Em outra edição, foram apresentados novos talentos da música instrumental, promovendo obras que saem diretamente do catálogo da Cedro Rosa, como a faixa "Amendoim e Caviar", de Tuninho Galante e Marceu Vieira, que personifica a brasilidade contemporânea com estilo e humor.
Essas iniciativas são mais do que um impulso cultural; elas representam um passo crucial para a transformação da cultura e da tecnologia como instrumentos de inclusão e desenvolvimento. Quando a comunidade participa ativamente como produtora, a cidade passa a respirar essa energia criativa.
Essa visão é a aposta para o futuro: um polo onde arte, ciência e tecnologia se encontrem para moldar um cenário cultural que seja, ao mesmo tempo, independente e globalmente conectado.
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