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Foto do escritorLéo Viana

ACUMULAÇÃO




Na minha lista de males do mundo, o primeiro é a acumulação.

Vem antes das guerras, da fome e das pandemias, pra falar de coisas que a gente tem visto seguidas vezes durante o nosso plantão aqui no planetinha azul.


E torna muito piores as outras três, ao menos aqui sob o meu limitado modo de ver.

Quando falo em acumulação, sejamos razoáveis, não tô falando do monte de livros ou camisas que eu tenho, nem dos teus cds, ingressos de shows ou lembrancinhas de viagem.


Nem dos dois ou três apartamentos que fulano ou cicrano tem, cobrando aquele aluguel pra complementar a renda. Óbvio que, somados, pequenos acúmulos como esses também se tornam problema, mas é pouco provável que tenhamos todos as mesmas manias e os mesmos imóveis. O acúmulo de riquezas em dimensões nunca vistas tornou o mundo um lugar muito pior, e isso bem antes que o atual vírus da moda nos prendesse em casa.


A esta altura do século XXI, vivemos num mundo em que há bilionários como nunca houve. Um relatório da OXFAM de 2016 indicava que oito bilionários tinham tanta grana quando toda a metade mais pobre da população do mundo, ou, naquela época, 3.7 bilhões de pessoas. Em 2017 melhorou um pouquinho: eram 42 (quarenta e dois!!) os ricos que concentravam o mesmo volume de recursos que o total da população da Ásia e mais um pouco ainda. Isso. A Ásia tem metade da população do mundo, foi só pra não repetir.


A Europa, que deu ao mundo Adam Smith, Keynes e Marx, tem uma distribuição menos concentrada, ainda que também tenha sido lá, nos idos do feudalismo, que tenham sido lançadas as bases mais conhecidas da concentração como vemos hoje, especialmente no ocidente. Muito das teorias de Keynes e Marx levaram a Europa à universalização da educação e à possibilidade de mais acesso às riquezas. O estado de bem estar, quase inexistente hoje, se mostrou eficaz e, não fossem as lembranças dele, talvez nem sobrasse Europa depois da atual pandemia. O Johnson, ainda com aquele cabelo arrepiado, não faz muito e tava ali na tv agradecendo ao serviço público de saúde da Inglaterra. Aquele mesmo que a Thatcher tentou destruir e quase conseguiu, antecipando em 30 anos a raiva do Trump ao Obamacare, aquela tentativa de universalização do sistema de saúde deles, muito mais tímida que o nosso SUS.


 

Vamos manter o Bip Bip Aberto.

 

Onde nunca houve estado de bem estar, como aqui em pindorama, a concentração começou com a colonização e vem crescendo de lá pra cá quase sem intervalos.

Na última conta, dizem que os 1% mais ricos tem 28,3% do total de riquezas e que os 10% mais ricos chegam a 41% de tudo.


No neoliberalismo atualmente em vigor, não há previsão de estado de bem estar (o vírus tem feito a sua parte pra reverter, mas as convicções de certos economistas parecem à prova de pandemias). Assim, a cada dia se estabelece uma separação entre vida e economia que eu não consigo entender e que se preocupa loucamente com os eventuais prejuízos que o atendimento de demandas sociais pode vir a causar.

É nessa hora que eu perco a paciência.


Uma sociedade capaz de produzir (dados da Oxfam) um bilionário a cada dois dias pelo mundo, que tem reservas como nunca houve (no caso do Brasil, o governo de plantão herdou o cofrinho lotado!) e na qual a maior parte do dinheiro não circula, ficando preso em aplicações especulativas que inclusive não contribuem pra qualquer processo produtivo (diferentes estimativas falam que há entre 50 e 75 trilhões de dólares em dinheiro no mundo mas, desses, cerca de 30-35 trilhões estão transitando em investimentos virtuais entre os mercados e rendendo dividendos a seus donos sem chegar ao processo produtivo e aumentando as dívidas, também virtuais, de quem tem menos), enfim, uma sociedade com essa quantidade de dinheiro embaixo do colchão, tem recursos pra acabar com a miséria do mundo várias vezes e proteger as pessoas dos males que as afligem, sejam pandemias, fomes ou guerras, garantir a atividade produtiva e quiçá os mesmos bancos onde o dinheiro fica guardado agora sem ajudar ninguém.



 

Procurando trilhas sonoras para videos, monetizados ou nao?

Escolha artistas da Cedro Rosa.

 

O auxílio emergencial poderia ser dado, praticamente sem prejuízo de ninguém, aos pobres do mundo inteiro. O dinheiro, afinal, entra em circulação e normalmente gera mais dinheiro.

Com a tomada do Estado pelos mesmos conceitos neoliberais que defendem a acumulação não produtiva sem repasse em benefícios sociais ao conjunto da população, continuaremos nosso ciclo de guerras, pandemias e fome, ao sabor do mercado, enquanto temos cada vez mais bilionários.


Aos poucos, eu vou me acostumando com o capitalismo. Mas nunca vou me conformar com uma sociedade em que o indivíduo seja mais importante que o todo e que o acúmulo individual e infinito de riquezas seja festejado como uma vitória, mesmo que essas riquezas, se divididas de modo um pouco menos desigual, pudessem tornar menos sofrida a vida de muito mais gente.


Uma das faces mais perversas dessa sociedade está no campo. Enquanto poucos produtores, donos de muita terra, produzem commodities para o mercado externo e ganham em dólar, geralmente tendo tido acesso a terra barata, financiamentos facilitados, impostos isentos ou reduzidos, à custa de desmatamento muitas vezes ilegal, avanço em terras indígenas e outras, digamos, benesses, a que alguns tem acesso, outros milhões de pequenos produtores produzem comida efetivamente, essa que chega na mesa das pessoas, na minha, na tua, ganham em real, sofrem com a falta de apoio público (já foi melhor, mas de uns tempos pra cá, nem é preciso comentar, né?) e equilibram-se na corda bamba do mercado com a falta de escala, dificuldades de transporte, preços injustos e pouca ou nenhuma ação governamental que os beneficie ou proteja.


Em tradução livre, aqueles que detestam o Estado e que defendem a sua redução ao mínimo, quando não sua extinção e entrega definitiva do Deus Mercado, são exatamente aqueles a quem o mesmo Estado garante todas as condições de trabalho e funcionamento, a fim de que possam acumular mais e mais e usar seus recursos, sempre que possível, contra o Estado. Os pobres, que necessitam do Estado e o enxergam como o grande e necessário guarda-chuvas, são desprezados ou submetidos a tratamento indiferente ou, pior, degradante.


O dinheiro acumulado no mundo garantiria anos de lockdown, como garantiu, quando necessário, a pesquisa das vacinas. A sociedade, ainda abalada com a pandemia, certamente não vai mudar suficientemente depois dela, a ponto de rever as bases do neoliberalismo dominante, mas o vírus chegou pra dar um susto. Vai ter quem queira acumular ainda mais, pra eventuais novas pandemias. Mas vai haver quem reconheça que a propriedade social de bens como as vacinas, bem como a saúde pública, como o NHS e o SUS, tem papel fundamental.


No caso dos que vão acumular ainda muito mais, dos novos bilionários, sonegadores de impostos, latifundiários e demais diretamente associados a esse nível de injustiça, o vírus bem que podia ter atuação mais destacada...


Rio de Janeiro, março de 2021.



 

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