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A VIDA E A CONTINGÊNCIA (1)           



Lembro bem que naquele dia de 1979 fazia sol. Um verão comum, sem a fervura dos atuais. Caminho por aquela estrada sem pavimentação, com carros e ônibus levantando aquela poeira de barro vermelho, em direção ao mercado para atender um pedido da minha mãe.


                  Quando acabo de pagar cai aquela chuva. Saio direto do caixa para me proteger sob a marquise na calçada do mercado.  No meio do barulho do temporal escuto uma música incomum para meus ouvidos bem juvenis. Uma melodia e um canto surpreendente. Nunca ouvi algo parecido. Se ouvi não foi retido na memória. Olho para o lado e vejo um jovem um pouco mais velho que eu dedilhando, com voz grave, canta em bom português - era “Abacateiro” do Gil. Ele também protegia o seu violão da água. Pensei mais ou menos assim: -Como pode neste fim de mundo ter alguém tocando um violão dessa maneira e esse tipo de música?”


Aproximei-me do jovem e perguntei onde ele morava, como se divertia naquele lugar, que eu imaginava não ter nada, exceto as peladas das tardes, no terreno baldio no final da minha rua. Ele riu, e me respondeu golpeando, sem saber, aquele meu preconceito moldado nos bairros de ricos e pobres e favelas do recém extinto estado da Guanabara. Descreveu com algum detalhe o que fazia com outras e outros jovens naquele lugar, que eu achava morto.


Aliás, minha rotina tediosa, tirando a bola, só se quebrava quando alguém identificava um corpo perdido na beira de um dos campos de futebol do bairro. E lá ia eu me juntar às crianças e jovens para cercar a mais nova descoberta de um “ser em si”.


Terminou a chuva, o céu abriu, acabou a conversa, retornei à minha casa. No mesmo dia, no meio da tarde, estava eu na casa do meu novo amigo ouvindo música brasileira que ele tocava de ouvido ou tiradas da Vigu – Gonzaguinha, Chico, Milton, Caetano, Gal, Elis, Bethânia, Nara, Tom, Djavan, Zé Ramalho, Ednardo, Amelinha, Elba Ramalho, Ney, Tom Zé, Rita Lee, João Gilberto, Dorival Caymmi etc. etc. etc. etc. Esse era o cardápio. Eu não conhecia nada. E se conhecia alguma, não lembrava.


Um ponto temporal fugidio, uma chuva breve e forte, uma música e uma rápida conversa me colocaram aqui, na forma de crônica. Quem pode com Exú, com as Moiras e sei lá mais quem.


E foi assim que Guariroba soou em Jardim Bom Pastor!


Edson Gargamel


 

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