A Mensageira
- Jorge Cardozo
- há 6 dias
- 2 min de leitura

Sempre cumpriu seu papel com zelo e eficiência. Lidava com toda a gente. Crianças, velhos, adultos, ricos e pobres, conservadores e revolucionários, cientistas e idiotas, xamãs e bispos. Através das eras trabalhou com potestades. Acompanhou as migrações primeiras do continente africano. Assombrou as escarpas dos Urais. Ceifou, indistintamente, donzelas, princesas, feiticeiras e produtoras de cerveja. Fez tremer os mais bravos centuriões do Império Romano. Invadiu as fortalezas das mais nobres Casas na Europa medieval. Esteve presente nas vitórias e derrotas dos povos Maia, Inca, Asteca, Tolteca e Guarani, muito antes dos brancos unirem tudo sob o apelido América.
Por vezes fez-se visível como um distinto cavalheiro: fraque, cartola, bengala e cavanhaque, solícito e sedutor. Noutras, apareceu como uma dama, a portar um livro enorme onde estariam anotados os nomes de todos os seres humanos e a hora derradeira de cada um. Foi chamada La Santa Muerte, Kali, e, por muito temor, A Indesejada das Gentes...
Jamais reclamou de seu ofício. Mas não tinha como evitar um sentimento difuso – talvez pudesse ser chamado de tristeza – pelo não reconhecimento de sua verdadeira função: serva das deusas e deuses, era a encarregada de limpar a criação. Imagine, pensava ela, o que seria da humanidade com bilhões de seres enfraquecidos pelo tempo, mutilados pelas tragédias naturais ou por si mesmos provocadas, aborrecidos pelo tédio de existências intermináveis. Não. As leis eternas e inescrutáveis, que mantêm a ordem e o equilíbrio do universo, não o permitiriam. Por isso, com modéstia e senso de responsabilidade, recebia diariamente as gigantescas listas.
Multiplicava-se em diferentes formas, apenas para que os mais sensíveis pudessem vê-la. Assim, quem sabe, questionariam a própria e óbvia finitude. Visitava cada pessoa assinalada – sem nenhum julgamento. Em algumas poucas ocasiões (frente à extensão de sua carreira) ousou chegar um pouco antes do prazo terminal. Isso porque interessava-se por aquelas criaturas tão frágeis, tão voláteis... E ainda assim, cheias de planos, ocupações, esperanças.
Quase ninguém conseguia percebê-la. Somente alguns debilitados por longas enfermidades, submetidos a intensos maus tratos por prisão ou escravização, loucos, místicos ou profetas.
Sua ínfima alegria era lembrar-se das raras vezes em que recebera um sorriso da criatura assinalada. Um sorriso que reconhecia nos seus olhos, dito ocos, uma réstia de misericórdia e empatia. Sorriso que era a expressão cúmplice de alguém que percebera estar diante de uma portadora, a qual não viera para punir, mas sim para facilitar o necessário e definitivo trânsito para que todos e cada um pudessem melhor acessar a mensagem, fosse qual fosse.
Jorge Cardozo
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