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A Mística Paz de Txana

Foto do escritor: Eleonora DuvivierEleonora Duvivier


As plantas no chão eram sugestivas, porém irreconhecíveis ao mudarem de forma e se deslocarem na madrugada, na densidade da vegetação e na vibração do chá de ayahuasca em todo o meu ser. Eu vinha do ritual que Onça conduziu aquela noite, no campo de futebol de sua aldeia para mais de sessenta pessoas, incluindo um grupo da televisão que tinha chegado lá na véspera para filmar um programa com ele em ação.


Com alguns de seus aprendizes, no ritual ele se sentou na terra segurando as jarras de ayahuasca, perto da extremidade principal do espaço e atrás de velas que produziam uma chama suficiente para destacá-los da escuridão como uma única figura dourada, enquanto os participantes ocupavam os bancos diante dos lados mais longos do campo. Estar sob as estrelas de um céu infinito, entre pessoas que fundindo-se no escuro não passavam de uma muda espera, dava `a ocasião a supremacia pungente e fantasmagórica da iminência de um evento cósmico e extremo. A lua veio subindo acima de nós com sua luz prateada e sonhadora, dando `as sombras daquilo que envolvia a intensidade misteriosa das entranhas da terra. Mais de um pajé entoou os cantos, mas como não se podia vê-los, suas vozes desencarnadas soavam como um eco de segredos assombrados. A voz do pai de Onça, vindo de um ponto totalmente invisível naquele escuro, tinha algo em comum com o miar de um grande felino, e a dos outros, passando de longos trechos de notas graves para agudos selvagens, transmitiam comunicação sobrenatural com a vida da floresta. As listas verticais, quase indiscerníveis das batas dos nativos ao se encaminharem para o ponto dourado de onde Onça servia o chá e voltarem para seus lugares engolidos pela escuridão, moviam-se com sinuosidade solene ao acompanhar os passos de quem vestiam, como que respondendo a uma coreografia do além.


Num certo momento durante a cerimonia, quando Onça estava prestes a rezar sobre nós, a sequencia luminosa de seus dentes brancos surgiu na nossa frente num sorriso efervescente que parecia boiar na noite com surpreendente autonomia, como se ao invés de pertencer a ele fosse o veiculo de expressão de seres imemoriais através da atmosfera. Ele vinha saltando de pessoa em pessoa quase que imperceptível, imaterial e serpentino, parando diante de cada um e dizendo palavras de cura. Quando em frente dos meninos e eu, duvidei que fosse uma entidade folclórica ao invés de humana. Não era a primeira vez em que o vi transfigurado. Do momento em que usa seu vestuário indígena, se funde com os cantos, transformando-se no sacerdote de ayahuasca e abandonando os seus limites humanos.


Permitiu que eu e meus filhos tomassem o quanto quiséssemos do chá pois sabia que tínhamos experiencia com a medicina. Mas quando as visões começaram a vir pra mim, tive que correr para alguma fossa que servisse como banheiro na aldeia. Um dos aprendizes de Onça me indicara a que devia se encontrar mais próxima dali, localizada, entretanto, a uma boa distancia de onde estávamos. Com uma mini lanterna na mão, alcancei a cerca irregular e bamba que contornava o buraco, e vi lá dentro um monte de insetos secos ou arrastando suas carcaças na agonia de seu final rastejar. Eu não tinha ideia de quão repetidamente teria que encontrar aquele lugar de nojo e alívio após o final da cerimonia, e na terceira vez em que o procurei, já tinha partido da varanda de madeira de Onça. Ele e Rosa já dormiam dentro da cabana, enquanto nós ocupávamos redes penduradas na extremidade dessa varanda que era oposta `aquela em que três indígenas dormiam nas as suas. Todos já haviam se retirado na aldeia, mas eu estava longe de acabar a purgação causada por ayahuasca, e tinha que continuar visitando o exilado buraco sem saber em que estava pisando no caminho, o que realmente via, e pra onde na verdade ia.


A falta de água corrente tinha sido anos antes a principal razão para que eu não fosse com os meninos a um festival de música na aldeia do povo de Txana, o pajé que primeiro nos introduziu à ayahuasca. Agora, por causa do etéreo Onça com a graça de seus gestos e o arco íris refratado da sua presença de cristal, parei de antecipar tudo que não fosse chegar a ele com meus filhos. E lá estava, sozinha no meio da notívaga e escura floresta, em todas as vezes que precisava novamente localizar a fossa. Encontrava-se a muitos passos da varanda de Onça, onde a minha rede estava espremida entre a de meu filho e minha filha, que haviam adormecido antes que meu purgatório se tornasse compulsivo.


Era um verdadeiro teste de tenacidade e paciência me libertar do interior dessa rede a cada vez que devia voltar ao buraco, regressar, entrar nela de novo, esperando que aquela provação tivesse terminado para sentir em alguns segundos que precisava sair de novo `as pressas. Na agonia de ter que calcular meus movimentos para me desemaranhar daquele canto apertado o mais rápido possível, tateava minha rede com mãos tremulas em busca da lanterninha e do papel higiênico de posse dos quais poderia caminhar sobre a obscura, traiçoeira, e, sob meus olhos alucinados, mutante vegetação, finalmente chegando à cerca bamba que nem bem contornava a condenada fossa, agachando-me sobre os dejetos de muitos, já preocupada com a dificuldade de voltar, me inserir novamente no meu reduzido lugar e na certa ter que repetir tudo de novo.


Tinha que colocar meus pés `a volta do buraco entre montes de papel descartado, aranhas gigantes, folhas secas, invólucros de besouros corpulentos e outros resíduos que eu nem tentava identificar, enquanto aturava o ataque frenético dos mosquitos `a minha área genital. A tirania da sobrevivência na floresta, a eterna e insaciável luta para comer ou não ser comido em nada combina com a maternidade que atribuímos `a natureza quando a sua beleza nos delicia ou quando lembramos, no vazio, de que ela é a fonte de tudo para nós. Mas sob a força de ayahuasca, eu ainda conseguia olhar para o céu e me dar conta de que, no seu cósmico poder de anular as polaridades que estruturam a nossa percepção tão jurada `a finitude, ayahuasca dá aos dejetos do corpo o mesmo direito de existir quanto `a vista sublime das estrelas. E quando não mais categorizamos as coisas em função do nosso bem-estar, do prazer do nosso olfato, da nossa vista e do nosso estomago, nada mais é ruim e nada mais é bom; tudo se redime na excelência da graça.


Mas sentindo-me cada vez mais fraca, seja lá o que eu visse refletia o meu medo de como eu iria acabar, e o movimento constante que eu fazia para apaziguar aquela purgação tirou a minha disponibilidade para as revelações de ayahuasca, exigindo que entre as formas fugidias a meu redor, eu discernisse o que estava no meu caminho do que seriam visões. Exigindo que eu fosse prática ao invés de contemplativa.


Numa das vezes em que me encontrei de novo andando sobre a mutante vegetação, fiquei perdida num lugar onde tudo se tornou irreconhecível e impenetrável `a luz da lanterna que comecei a apontar em todas as possíveis direções. Na minha incapacidade de identificar o caminho para a cabana de Onça ou para a fossa de onde eu vinha, a mistura da escuridão com as formas indecisas e se transformando `a minha volta, mais a cacofonia dos sapos, o obsessivo marca-tempo dos grilos, os grunhidos de algum javali por perto, e o canto remoto de um galo me horrorizaram, inundando minha imaginação com imagens degradantes do que restaria de mim se não conseguisse sair dali e fosse encontrada na luz do dia pelos nativos, já devorada por insetos e cobras num “civilizado” e vergonhoso desamparo.


Estar sozinha na noite da floresta, desorientada e suspensa entre duas realidades era como uma sentença de morte. Petrificada, achei que ninguém me ouviria se gritasse socorro. Segundos agonizantes se passaram, e do céu, só mesmo do céu ou da voz de ayahuasca, a lembrança da mística paz de Txana me veio `a mente, do dia em que me desculpei com ele por estar rindo sem controle durante uma cerimonia que conduziu e ele me acalmou dizendo que não havia razão para desculpas pois tudo que acontecia sob a força de ayahuasca era porque tinha que acontecer. Txana é desapegado na maneira desinteressada com que olha o mundo, é ótimo cantor das músicas que compõe, e poeta natural. Um dia, quando veio se despedir de minha filha e eu na véspera de deixarmos o Brasil, caminhou conosco pela calçada do arpoador até o fim, e se pôs a apreciar as ondas e o vento.


Eu lhe tinha perguntado se em menino havia sido discriminado na escola por ser indígena e ele disse que sim, mas após um momento, falou que aprendera muito com o vento. Esperando alguma estória mítica sobre um poder sobrenatural do vento, perguntei-lhe como, e ele simplesmente respondeu que tudo que lhe diziam de ruim, ele deixava o vento levar pra longe de sua pessoa. Simples como foi, essa resposta não deixou de dar ao vento, se pensarmos com a poesia de Txana, o poder sobre natural que eu tinha imaginado. Assim é ele, num acordo místico e desinteressado com a alma das coisas. Por isso, na solidão que senti na floresta, a lembrança de suas palavras me deixou capaz de respirar fundo e perceber que o que eu estava passando era naquela vez a lição da medicina para mim.


Sempre consegui confiar na liberdade de ayahuasca destruir nossas muletas mentais e na redentora generosidade com que resgata a dignidade de todos e de cada qual, em poucas palavras, no sagrado da sua natureza. Tornando-me capaz de tudo entregar a ela, senti uma certeza milagrosa, e girando a lanterna mais uma vez consegui identificar a forma de uma arvore que levou `a vista distante da cabana de Onça.


Nunca esqueci a salvação de Txana, anjo indígena que tem lugar especial no meu coração.

 

Escuta.



 

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