É Real
Dia desses assisti a um filme de 2015 em que Sherlock Holmes, já idoso e meio senil, com problemas sérios de memória, vivia um permanente conflito entre o real e o ficcional. Na história era uma coisa subliminar, mas foi o que mais me chamou à atenção. Pra além do fato de que tudo na história de Sherlock é ficcional, o personagem sofria com as memórias escritas por seu fiel escudeiro, o Dr. Watson, que o deixara um pouco antes de sua aposentadoria.
Mr. Holmes reclamava da imagem criada para a ficção, que incluía o chapéu de caça e o cachimbo, com os quais nós todos nos acostumamos na composição de sua figura icônica.
Não se trata de um grande filme, não vou procurar dados técnicos pra ilustrar e nem nada, mas tá na Netflix, não é difícil de encontrar, pra quem se interessar e não tiver visto.
Música Popular do Brasil, ouça nesta Playlist da Spotif
O que me interessou mesmo, depois que comecei a assistir despretensiosamente ao filme, foi essa tênue linha destacada entre realidade e arte, representação do real. É pouquíssimo importante o fato de, no caso, ambos serem fictícios. Precisamos suspender a nossa racionalidade, a nossa credulidade, diante de uma obra de arte. Afinal, a arte existe porque a vida não nos basta, disse o Ferreira Gullar, com precisão.
Nós somos contemporâneos de mais inovação tecnológica do que todos os humanos que viveram em gerações anteriores, incluindo Leonardo da Vinci, Thomas Edison e Albert Einstein, pra aumentar o impacto da afirmação. Me parece que, com isso, perdemos já há algum tempo uma parte do fascínio com a novidade e, aparentemente perdemos junto a capacidade de diferenciar realidade e ficção, arte e vida real. O exemplo clássico no século XX foi a construção, sólida, do mito americano sobre a segunda guerra mundial através do cinema. Ninguém duvida da capacidade do exército americano e é inegável que a reconquista da Europa Ocidental se deveu a eles. Mas foram os russos – feitos inimigos pela história – que conquistaram Berlim e mostraram ao mundo os campos de concentração, além de enfraquecer os alemães no leste, ajudando a bagunçar o coreto no oeste, facilitando a dura missão dos exércitos ianques.
Hollywood também foi determinante com o Vietnam. Os americanos voltaram vergonhosamente derrotados depois de arrasarem covardemente um país pequeno, mas, ainda que haja um princípio de mea culpa, que rendeu bons filmes, a maioria das histórias levadas ao cinema fala do heroísmo dos soldados estadunidenses. Quem procura informação séria sobre aquela guerra, no entanto, geralmente encontra coisa bem diferente de heroísmo.
História real à parte, todavia, nada se compara ao atual estado de coisas, em que a ficção muitas vezes parece mais real que a realidade e a dita realidade não se faz crível. Talvez tudo tenha começado com a cultura das celebridades. Em determinado momento histórico, se tornava célebre quem realizava algo que merecesse mérito coletivo. Grandes artistas, grandes médicos, grandes engenheiros, intelectuais, atletas, arquitetos, políticos, empresários. Muito tempo se passou até que a simples aparição em massa, não subsidiada por uma capacidade destacada, levasse alguém ao estrelato, alçasse pessoas comuns à condição de celebridade.
O desenvolvimento tecnológico, que nos conectou definitivamente, e eu já disse isso aqui há poucas semanas, trouxe junto uma espécie de “direito à celebridade”, que elevou a potências desconhecidas os quinze minutos de fama que todos alcançariam, na previsão minimalista do Andy Warhol.
Música de Bar e Boteco, ouça na playlist da Spotify.
Prolongados, os instantes de fama, que não necessariamente pressupõem talento algum, criam a ilusão permanente de algo a ser acompanhado, como uma novela ou série, mesmo nos casos de vidas desinteressantes. Ah, a pós-modernidade...
O melhor do Brasil, no entanto, é a capacidade permanente e superlativa que temos para criar, diuturnamente, além das celebridades instantâneas, fatos que desafiam a mais elementar lógica baseada no iluminismo, no contrato social ou em qualquer outra norma ou conjunto de preceitos civilizatórios básicos. Um desafio até aos maiores ficcionistas!
No início era a negação do racismo, a defesa de torturadores e a investida radical contra o meio ambiente, na contramão do óbvio ululante. Passamos pela negação da ciência e pela adoção de um laissez-faire inexplicável em plena pandemia, sem definições nacionais e com incentivo a soluções sem respaldo científico. Vi de perto – e sigo vendo, incrédulo – gente que acreditou mais no capitão do que nos cientistas.
O repetido capítulo das motociatas sucedeu ao também repetido episódio da negação – paradoxal – da tecnologia das urnas eletrônicas. Logo eles, tão adeptos da comunicação virtual e do uso exaustivo do aparato digital? Um marciano que descesse aqui obviamente não entenderia nada. Vários articulistas inclusive fizeram essa menção ao marciano, uma alegoria da surpresa levada às últimas consequências, mesmo imaginando que o marciano tenha tentado se informar sobre o que encontraria. De qualquer forma, o longo tempo de viagem sempre será um álibi pra que ele tenha perdido a informação mais atual. Não há qualquer evidência sobre hábitos de leitura de marcianos no transporte.
Samba-Jazz-Choro, ouça nesta playlist da Spotify.
Eu, que não sou marciano e leio os jornais todos os dias, ainda tô tentando entender a parte do Viagra, das próteses penianas e do lubrificante íntimo. Sei exatamente para o que servem, mas não consigo associar com as atividades-fim das forças armadas.
Somos uma sociedade viciada em comunicação de massa, com a necessidade permanente de informações, tanto gerais quanto customizadas, interessada na tatuagem íntima de uns e outros, umas e outras, tanto quanto na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Uma sociedade em que cada um tem certeza absoluta de que participa, junto com todas as outras pessoas, de um reality show com direção, luz e som.
Eu tento, tanto quanto possível, me manter como espectador do jogo, sem participar muito, ao menos não o tempo todo.
Mas não sou de ferro, confesso. Tenho muita expectativa sobre os próximos eliminados – tenho um favorito, nunca escondi isso - e sobre o que é que vai aparecer no jogo depois do conjunto de referências sexuais. Há quem fale em bonecas ou bonecos infláveis, vibradores a pilha ou cuecas de couro. Eu apostei na contratação de anões priápricos, superdotados e besuntados de óleo. Afinal, se é pra esculhambar, que sejamos intrépidos. Somos nós que financiamos o jogo e o patrocinador, neste tipo de entretenimento, tem a última palavra!
Rio de Janeiro, abril de 2022.
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