Ivan Nunes Ferreira

18 de jun de 2022

‘O Meu Guri’, de Chico Buarque

Ivan Nunes Ferreira

Ivan Nunes Ferreira

O compositor dispensa apresentação, diferentemente deste advogado. Para o leitor entender a escolha dessa música e o teor das minhas observações, esclareço minha ligação estreita e interessada com o sistema educacional. Dei aula por vinte e dois anos na PUC-RJ (cadeira de Processo Civil), ajudei a fundar a ESA (Escola Superior de Advocacia) e leciono na Pós-Graduação daquela Universidade, na área de arbitragem comercial.

A fina ironia de Chico Buarque conta sobre o ganho rápido de um menino de favela, obtido à margem das estruturas econômicas convencionais. Retrato sarcástico de uma catástrofe nacional: a cooptação de multidões de menores e adolescentes pelo crime organizado.

Como o compositor, assim como eu, pertencemos ao sexo masculino, sempre ouvi a música como um relato de um pai sobre o seu “guri”. Minha mulher convenceu-me tratar-se de uma mãe solteira sobre as “façanhas” de seu filho inesperado. Com argumento matador:

Me trouxe uma bolsa [e não uma carteira] com tudo dentro [...] para eu finalmente me identificar” (segunda estrofe da letra).

Esclarecido esse ponto, vou mencionar uma experiência pessoal para introduzir meus comentários. Em busca de águas cristalinas, boas ondas e pouca gente, todos os anos, meus filhos e eu vamos surfar numa ilha na indonésia, chamada Sumba, ao sul de Bali. Na viagem de van do aeroporto até o resort, sempre me emociono com a seguinte e repetida cena: crianças saindo de suas casas humildes, verdadeiras choupanas, meninas e meninos muito bem arrumados, uniformes e cabelos impecáveis, a caminho, a pé, da escola, num trajeto de alguns quilômetros.

A cada meia hora, avisto uma escola, todas bem construídas, com filas organizadas de alunos para entrada nas salas de aula. A imagem irradia um sentido de importância e respeito pela educação. Quanto às crianças, sua postura e o cuidado de seus pais transmitem a ideia de que a escola pode mudar suas vidas.

O cotejo com o Brasil logo invade a minha mente. Aqui, com raríssimas exceções, o sistema público de educação deteriora-se progressivamente. A lembrança de cenas assustadoras de alunos com ameaças, físicas e até armadas, contra professores, de destruição por eles de cadeiras e estantes de livros, em sala de aula, que algumas vezes assisti pela TV, realça esse contraste com as crianças que observo em Sumba, e aumenta minha tristeza, porque reflete parte do lado medonho da realidade social contemporânea do nosso país.

A Indonésia cresceu, nos últimos cinco anos, a uma média anual de cinco por cento (PIB). Por aqui, levamos cinco anos para crescer bem menos do que cinco por cento. O contraste a que me referi explicaria a diferença? Não sei, mas constato que ficamos muitíssimo atrás dos países asiáticos, em termos de educação, desenvolvimento humano e tecnológico. E pouco fazemos para melhorar. Olha que a Indonésia é uma democracia, coisa rara por aquelas bandas.

Por conta do maciço investimento em educação e tecnologia, por países como Coreia do Sul; China; Vietnam e Indonésia, este Século XXI, provavelmente, tornar-se-á um século asiático, como demonstra a obra de Niall Ferguson, “Civilização, Ocidente vs. Oriente”[1]. A invasão econômica chinesa já começou, principalmente na antiga rota da seda, na África e no Brasil, como adverte Peter Frankopan, no seu “The New Silk Road”[2].

Sem um projeto educacional próprio; sem vontade política de investir em ciência; tecnologia e cultura, acabaremos lacaios de outras civilizações, talvez, agora, do leste.

Sobre o acima, repito, na carona de outra música do Chico, que “está provado,quem espera, nunca alcança[3].

Voltando à obra objeto deste artigo, a letra de “O Meu Guri” fala, em tom cáustico, de mazelas sociais, das quais não conseguimos nos livrar:

- Gravidez precoce e fome.

“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
 
Não era o momento dele rebentar
 
Já foi nascendo com cara de fome
 
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
 
Como fui levando, não sei lhe explicar
 
Fui assim levando ele a me levar
 
E na sua meninice ele um dia me disse
 
Que chegava lá
 
Olha aí
 
Olha aí
 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
 
Olha aí, é o meu guri
 
E ele chega”

- Invisibilidade social

“Chega suado e veloz do batente
 
E traz sempre um presente pra me encabular
 
Tanta corrente de ouro, seu moço
 
Que haja pescoço pra enfiar
 
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
 
Chave, caderneta, terço e patuá
 
Um lenço e uma penca de documentos
 
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
 
Olha aí, é o meu guri
 
E ele chega”

- Violência urbana

Chega no morro com o carregamento
 
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
 
Rezo até ele chegar cá no alto
 
Essa onda de assaltos tá um horror
 
Eu consolo ele, ele me consola
 
Boto ele no colo pra ele me ninar
 
De repente acordo, olho pro lado
 
E o danado já foi trabalhar, olha aí
 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
 
Olha aí, é o meu guri
 
E ele chega

- Morte prematura

Chega estampado, manchete, retrato
 
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
 
Eu não entendo essa gente, seu moço
 
Fazendo alvoroço demais
 
O guri no mato, acho que tá rindo
 
Acho que tá lindo de papo pro ar
 
Desde o começo, eu não disse, seu moço
 
Ele disse que chegava lá
 
Olha aí, olha aí
 
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
 
Olha aí, é o meu guri

Enquanto cada criança brasileira não tiver acesso a uma creche; uma escola de tempo integral, com cantina para três refeições diárias; enfermaria para saúde básica; quadra poliesportiva e professores valorizados, não iremos a lugar nenhum.

Na minha visão de mundo, o Estado brasileiro deveria voltar-se, logo e exclusivamente, para prover educação, saúde e segurança, o que, por si só, constitui tarefa gigantesca.

O ECA, Estatuto da Criança e Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), prevê direitos fundamentais para a gestante (art. 7º e seguintes) e para a infância (art. 3º e seguintes); creche (art. 208 e seguintes) e escola (art. 53 e seguintes) para todos.

Como de nossa tradição, colocamos tudo – até a felicidade – no papel, na Constituição, para iludir o povo, mas falhamos, sempre, quando tentamos implementar políticas públicas compatíveis com os textos legais.

Um amigo contou-me, recentemente, uma estória que me comoveu bastante. Ele, após conseguir sucesso financeiro, decidiu dedicar-se à filantropia. Amante inveterado da música, criou uma instituição para promover jovens músicos em comunidades carentes.

Certo dia, encontrei-o com semblante triste e olhos de choro. Um dos seus músicos, rapaz talentoso de uns 20 (vinte) anos, o qual, inclusive, pouco tempo antes, fizera sucesso em apresentação na Alemanha, como violoncelista, acabara de comunicar-lhe sua decisão de sair do projeto musical. Sua mãe caíra doente e ele precisaria de dinheiro, no curto prazo, suficiente para sustentar e proteger sua família. Resolvera ,então, trabalhar para o tráfico.

Durante quanto tempo vamos perder jovens e talentos para o crime organizado? Quantos milhões de “guris” vamos produzir até que resolvamos dar às nossas crianças e jovens uma perspectiva de vida digna? Quantos morrerão sem nunca frequentar uma escola? Por quanto tempo nossas autoridades continuarão insensíveis diante da única salvação possível para nossa desigualdade social?

Finalizo com um compositor, como Chico, igualmente genial:

The answer my friend is blowing in the Wind. The answer is blowing in the wind[4].


 
[1] Niall Ferguson, ‘Civilização, Ocidente vs. Oriente’, Editora Planeta, 2017.
 
[2] Peter Frankopan, ‘The New Silk Road’, Editora Bloomsbury, 2018.
 
[3] Chico Buarque, ‘Bom Conselho’, 1973.
 
[4] Bob Dylan, ‘Blowin´in the wind’, Columbia Recording Studios, Nova Iorque, 1962.

Artigo publicado no livro “Música e Direito”, já nas livrarias.


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